terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Quitandinha abre vaga para Relações Públicas

por Letícia Bahia


Prezados,

Venho por meio desta me candidatar ao cargo de Relações Públicas do bar Quitandinha. Acredito que posso ser de grande ajuda no sentido de gerenciar a crise envolvendo a cliente Julia Velo e recuperar a imagem do estabelecimento. Para comprovar o que digo, envio não meu currículo, mas uma resposta que poderia ter sido publicada em nome do bar e que, acredito, teria evitado que esta crise tenha tomado as proporções que tomou.

Estou à disposição para um encontro presencial no qual possamos nos conhecer melhor, certa de que esta oportunidade será positiva para todos nós.

Atenciosamente,

Letícia Bahia


Carta aberta a Julia Velo

Prezada Julia,

Antes de mais nada, queremos agradecer sua presença naquele 4 de fevereiro em nosso bar. Nossos clientes, todos eles, são nossa razão para existir e continuar fazendo do Quitandinha um bar de sucesso desde 1993. Nós queremos que você volte, Julia, e por isso te escrevemos. 

As redes sociais rapidamente viralizaram um relato no qual você relata uma situação de assédio no nosso estabelecimento, o que é inadmissível. Não por ser o nosso estabelecimento, não por ser você, mas porque qualquer situação de assédio é inadmissível. Queremos que saiba, Julia, que estamos estarrecidos com sua história, e aqui pedimos desculpas publicamente por qualquer conivência que possa ter havido por parte de nossa equipe. Sabe, Julia, essa coisa de Feminismo e essa discussão sobre assédio é novidade pra nós. Nos preocupamos com o bem estar de nossos clientes acima de qualquer coisa, e somos particularmente sensíveis à questão das mulheres, justamente porque, cada vez mais, nos damos conta da realidade que vocês enfrentam diariamente. Mas ainda temos muito o que aprender, e vamos aprender.

Tenha certeza de que os acontecimentos do dia 4 serão amplamente discutidos junto com a equipe e que faremos o impossível para que você e todas as mulheres possam frequentar o Quitandinha sem preocupação. Esperamos que você volte, Julia, e que possa ser nossa parceira na construção de um espaço cada vez mais acolhedor.

Grande abraço,
Equipe Quitandinha


***

Epílogo

Depois de meter os pés pelas mãos em notas desmentindo e desqualificando a versão de Julia Velo, o Quitandinha divulgou, ontem, o que seriam as imagens das câmeras de segurança referentes ao episódio. A legenda é tendenciosa e o vídeo parece ter a intenção - eles não vão parar de atirar no próprio pé? - de limpar a imagem do bar e desmentir o relato de Julia. Qualquer relações públicas desaconselharia esta postura. As regras de ouro do mimimi corporativo são claras: "não enfrentarás o cliente. Buscarás, sempre e até a falência, uma postura conciliadora". Os caras faltaram nessa aula, e pagarão caro por isso. Hoje veremos mais um levante feminista nas redes sociais.


Agora vamos prosseguir ao que de fato importa, que é o dia 4 de fevereiro. Qualquer que seja sua opinião a respeito, não se engane: ela é apenas a sua opinião. É impossível saber o que de fato aconteceu. Mesmo com as filmagens - e ainda que elas sejam legítimas, porque vai ter gente questionando isso - não é possível saber. Situações de assédio são sempre confusas. Elas geralmente envolvem bebida, envolvem diálogos acalorados, envolvem picos de emoção. Nossa memória nunca (nunca) é plenamente confiável, nunca é a transcrição fiel dos fatos, e isso se agrava na presença desses elementos. O que a gente pode e deve buscar se quiser de fato entender o que houve ali são versões. Como é que a gente pode querer buscar verdades se estamos, nós mesmas, redesenhando todas as definições de assédio? 

Ainda estamos naquela transição cinza em que o que é assédio para um pode não ser assédio para outro. Minha mãe mesmo acha que nós, feministas, estamos exagerando e que ouvir um "gostosa" na rua é elogio. É a percepção dela, como é que eu vou dizer que uma percepção está errada? É claro que é preciso que a gente se posicione diante das Julias Velos que inundam as redes com suas histórias de assédio (embora me assuste o quanto muitas feministas ignorem a importância de se ouvir o outro lado). É importante que a gente mostre nosso repúdio a lugares coniventes com o assédio. Mas o mais importante - porque o mais importante é que assédios parem de acontecer, não é? - é que a gente possa conversar sobre isso, ter clareza sobre as nossas definições e pleitear que os homens as acatem sem questionamento, porque o que diz respeito ao corpo do outro a gente acata e ponto. Não sei o que houve na noite de 4 de fevereiro, mas posso afirmar categoricamente que o Quitandinha cometeu um erro grave ao se esquivar desse debate. É claro que o bar é conivente. Aposto meu polegar direito que ali acontecem assédios todos os dias. Ali e em qualquer outro boteco. Pois se eu, com meu olhar biônico de feminista volta e meia me percebo conivente com situações de opressão, como é que vai um dono de bar querer se isentar desse caldo cultural no qual estamos todos imersos? Perderam uma oportunidade e tanto de se colocar junto à vanguarda, isso sim. 

No mais, torço pra que a gente possa se debruçar menos sobre "a verdade" do 4 de fevereiro e mais sobre o contêiner de aprendizado que essa história traz consigo. Tem debate bom por aí, e se a gente der conta, todo mundo ganha.  

À Julia, desejo que esteja sendo bem cuidada por seus queridos e queridas, que não há de estar sendo fácil.

Ao Quitandinha, no qual eu jamais trabalharia, uma dica: desencana desse vídeo, vamos conversar?

* curta Reflexões de uma lagarta no Facebook

2 comentários:

  1. Deveriam liberar todos os vídeos sem edição.... afinal, edição EDITA o conteúdo original dos vídeos... e chamar os vagabundos que assediaram as vítimas de "meninos".... lembrou o jornalismo podre que chama o favelado de criminoso e o playboy de "menino", "jovem de classe média"

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