quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Eu sou racista

por Letícia Bahia


Quem é racista em um país racista em que ninguém se acha racista? 

Esta semana foi a vez da marca de roupas Farm sair em defesa de si própria contra acusações feitas pelo rapper Emicida:


A loja respondeu assim:


Quando vai chegar a hora de baixarmos a guarda para encarar de frente esse monstro que ri a cada vez que acusamos o vizinho, nunca nós mesmos, de alimentá-lo? Pois começo eu.

Cerca de cinco anos atrás tive uma breve história com o Kleber, o único rapaz negro com quem eu, branca de classe média-alta, já me relacionei. Por conta da cor da sua pele, me perguntei se a escola em que ele estudara, cujo nome eu desconhecia, era pública. Quando pensei em apresentá-lo aos meus pais, me perguntei se deveria "avisá-los". E se eles se surpreendessem? E se o Kleber enxergasse racismo nos olhos dos meus pais?

O encontro nunca aconteceu e eu nunca contei ao Kleber - até agora - sobre meus pensamentos racistas, embora nós tenhamos tido algumas conversas sobre o tema. Ele me contou algumas das cenas de preconceito que estão espalhadas pelas esquinas de sua vida. Mas eu quis enfrentar essa podridão em mim, pois sei que a gangrena, quando ignorada, pode apodrecer o corpo todo.

O primeiro alívio veio das conversas com amigas: unanimemente elas disseram que certamente teriam experimentado os mesmos dilemas que eu. Ufa, eu não era um monstro. Ou, se era, estava também entre monstros. Passada a fobia de mim mesma - essa que impede a Farm e o Brasil de reconhecerem o racismo em si - pude caminhar de volta pela história vivida. Era ali - eu sabia - que estariam as respostas que me permitiriam dar início à cirurgia de extração. 

Reencontrei professores fabulosos que me ensinaram que os livros de História contam não mais do que uma verdade particular e enviesada, e que é importante buscar a verdade do índio, do povo negro, dos retirantes nordestinos. As aulas de religião, no primário, até hoje me fazem lembrar de algumas parábolas, tão cheias de sentido que nem meu ateísmo foi capaz de lhes roubar a importância. E o que dizer de meus pais e meus irmãos, essas criaturas tão cheias de defeitos quanto de humanidade? Não, nunca me foi dito que não éramos iguais, que eu devesse me relacionar a partir de uma escala de melanina. Nunca me foi dito. E no entanto, onde estavam esses negros que eram iguais a mim? Onde estava o Kleber que só foi aparecer depois dos meus vinte e tantos anos? 

Fui então compreender que o que aprendemos com as palavras de outras pessoas se desfaz como papel molhado diante do que nos ensina a experiência vivida. Como eu poderia, no íntimo, acreditar no que me diziam todos aqueles adultos espetaculares, se todos os dias era outra verdade que se imprimia em minha retina? Como poderíamos ser todos iguais se a metade negra da população estava lá longe, nos lugares em que ninguém queria estar? Se eram iguais, porque não estavam na mesma sala de aula da minha escola chique?

É preciso que paremos, e imediatamente, de apontar o dedo. É preciso que nos queimemos, como escreveu Nietzsche, em nossa própria chama: "como se renovar sem primeiro se tornar cinzas?". Se o culpado é o outro, eu sou o outro de alguém. E daí se a Farm for culpada? E daí se todos acordarmos, juízes auto proclamados que somos, que a marca reproduz o racismo em seus editoriais? Onde foi que aprendemos a crer que a mudança é fruto do veredicto? Como podemos exigir que o mundo se curve à nossa voz autoritária que diz: "você está errado, mude", se não estamos dispostos a reconhecer que, à noite, sozinhos, nós também odiamos?

É claro que eu gostaria de ver a Farm responder que, "puxa, não tivemos a intenção de ofender ninguém, mas convidamos o movimento negro a debater conosco as reproduções do racismo no mundo da moda. Erramos e queremos entender por quê". Mas não se trata da Farm, e esse parece ter sido o ponto que se perdeu na fala de Emicida: "sem novidade". Este é só mais um exemplo, e a compulsão por apontá-los não está nos levando adiante. Ao contrário: quem dignostica o racismo do outro parece crer que ganha imunidade. "Se vejo no outro é porque não sou". E assim seguimos, sofisticando mais e mais nossas maneiras de esconder essa verdade urgente. 

Gandhi disse que devemos ser a mudança que queremos ver no mundo. Eu pergunto: como você pode ser a mudança sem antes reconhecer o que precisa mudar?    


*** leia também Eu sou racista vol. II


   

8 comentários:

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