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terça-feira, 12 de julho de 2016

Prostituição, Julia Roberts e o amor romântico

Ela era magra, linda, sonhadora, desbocada e, como se não bastasse, ruiva. O príncipe veio não a cavalo, mas em um carrão, e comportou-se como se estivesse no mais tradicional dos contos de fadas, oferecendo-lhe o combo amor e dinheiro. Em troca - pra não dizerem que a relação é totalmente assimétrica - aprendeu um pouquinho sobre a candura que a vida de empresário durão não lhe permitia. Qual a mulher que um dia não quis ser puta, se ser puta era ser Julia Roberts em Uma Linda Mulher? Ocorre que, fora dos filmes que (ainda?) reproduzem os contos de fada, a realidade da prostituição é outra.
De acordo com o Relatório Mundial sobre a Exploração Sexual - A prostituição no coração do crime organizado, da Fundação Scelles, 42 milhões de pessoas (ou quase uma Espanha) se prostituem no mundo. A pesquisa que deu origem ao documento foi realizada em 24 países e talvez seja a maior já realizada sobre o tema. Ela aponta que, dessas 42 milhões de pessoas, a maioria (56%) está na Ásia, 75% são mulheres entre 13 e 25 anos, 2 milhões são crianças e 10% não está vinculada a cafetões ou cafetinas.
É provável que nenhuma delas seja ruiva, mas se a realidade da prostituição está longe do conto de fadas de Julia Roberts, talvez um olhar mais atento possa nos mostrar que entre as 42 milhões de pessoas que vendem sexo há muito mais diversidade do que o nosso olhar piedoso quer enxergar.



O estigma da prostituição faz o que qualquer estigma faz: cola na testa do indivíduo um rótulo depreciativo e totalizador. A etiqueta de prostituta passa a definir a pessoa. Tudo o que ela é e faz deriva desse rótulo. Naturalmente, populações estigmatizadas (portadores de necessidades especiais, negros, índios, homossexuais, prostitutas e outros) não participam da construção do significado dos rótulos que lhe são atribuídos.
Não é o homossexual, mas o autor da novela da Globo, quem define o que é ser gay. Sobre populações indígenas, quem recheia nosso imaginário talvez seja mais o cinema americano do que o nosso próprio, mas os índios brasileiros é que não são. Tampouco são as prostitutas que determinam o que significa, em termos de imaginário social e de símbolos, o que é ser puta (elas jamais decidiriam, por exemplo, que ser filho delas seria ofensa).
Se quem define o rótulo é quem está fora dele, não espanta a enxurrada de documentários e filmes com pinta de cinema europeu que mostram a realidade das prostitutas no Nordeste, a realidade das escravas sexuais na Mongólia, a realidade das mulheres cafetinadas por empresários nos megaeventos esportivos.
A princípio pode não parecer uma descrição ofensiva - certamente quem mostra essas realidades não quer ofender -, mas o ponto comum entre essas histórias é a figura da mulher esmagada pelo patriarcado e pela pobreza. Curiosamente, o lugar da mulher no mundo patriarcal é exatamente o daquela que, vítima impotente, precisa de um herói que a resgate. Parece ter ficado impossível falar sobre prostituição sem mostrá-la como necessariamente uma tragédia. Mas por que insistir tanto nesse recorte? Se até Glória Perez já emplacou novela da Globo sobre o tráfico de mulheres na Turquia, quem é que nós ainda estamos tentando convencer?
Não falta ninguém, falta só o último apagar a luz. Mas a sala ainda está abarrotada de gente que nunca conheceu uma prostituta esbanjando opinião sobre como salvá-las. É curioso observar o quanto nos sensibilizamos com as tragédias contadas peloFantástico, pelo Profissão Repórter ou por aquele documentário brilhante premiado em Cannes, sem nunca nos dar conta de que, invariavelmente, o que se vê e se ouve nesses contextos nunca é propriamente a verdade sobre a prostituição, mas sempre o olhar de alguém sobre a prostituição - alguém que, provavelmente, é branco, rico e homem.
Não se trata de desmentir as tragédias da profissão mais antiga do mundo, mas de somar outros relatos. Pouco se fala, por exemplo, da contribuição das prostitutas brasileiras para a construção de políticas de combate à epidemia de HIV/AIDS nos anos 90. Tendo sido vítima preferencial do estigma associado ao vírus, as prostitutas (e também os homossexuais) foram peça fundamental na construção de uma política de saúde pública que virou referência mundial.
Também não é permitido comparar a prostituição a outras profissões que, igualmente, a maioria de nós não deseja para seus filhos e filhas. Não, nada é mais degradante do que ela. Mas se a prostituição oferece alto risco de infecção por DSTs, um motoboy em São Paulo está a mercê do trânsito que mata 7 motociclistas a cada dia. Se elas estão no ofício por falta de opção, eu pergunto qual é a faxineira que escolhe limpar na privada o rastro das fezes alheias. Infelizmente, pouca gente admite esse tipo de comparação. Ela é a pior e ponto, não insista no debate. Onde foi que pegamos a curva errada e discutir a prostituição em toda a sua complexidade se tornou sinônimo de dizer que se prostituir é bacana?
Há de ser culpa da Julia Roberts, essa princesa eterna, repetitiva e enfadonha que a gente tem tanta dificuldade de matar. Em todas as suas versões ela nos lembra: sexo e amor tem que andar sempre de mãos dadas. Não se deve separá-los, não é coisa de mulher que se preze. Nós passamos milênios sendo treinadas para vincular obrigatoriamente amor e sexo, luz de velas e sexo, comida italiana e sexo. Essa é a lógica que estrutura o amor romântico patriarcal, o amor nos moldes das religiões cristãs - elas, que tanto batalham pela nossa coroa de rainhas do lar. O sexo, dentro desse contexto, é o maior valor da mulher, e por isso ela deve entregá-lo a poucos. Se for a um só, tanto melhor. Se for a nenhum, aí a gente beatifica, como fizemos com aquela moça que, dizem, pariu sem trepar.
A ideia de que o sexo deve ser concedido com parcimônia é irmã da ideia de que o sexo suja a mulher. Nós sabemos que existe uma relação direta entre o valor da mulher e seu número de parceiros e estripulias sexuais. É só por isso que faz sentido para quem é machista chamar a presidenta de vadia: porque aproximar uma mulher do sexo é rebaixá-la. Em uma sociedade patriarcal, o sexo só é bem visto se for presente especial concedido a um homem. Sexo é desonroso se for feito entre dois homens, entre duas mulheres, entre muita gente, com muita gente, e também se puder ser vendido, principalmente se quem vende é uma mulher. Em uma sociedade capitalista é preciso ser dono de algo para vender esse algo, e a mulher ser dona do próprio sexo é, ao lado do aborto, a mais alta transgressão da lógica patriarcal.É claro que precisamos problematizar a proporção imensa de mulheres que fazem uso do corpo em detrimento das ideias, mas é igualmente importante refletir sobre porque a sedução feminina se tornou arma indigna enquanto o mesmo não aconteceu com a força, atributo maior da masculinidade.
Jogar a prostituição no saco do proibicionismo decidindo que ela é essencialmente uma coisa ruim, um mau a ser extirpado, é triste e simplório. Nós já conseguimos mudar esse paradigma em relação às drogas. Antes elas eram más, hoje elas podem ser más, a depender da relação que se estabelece com elas. Hoje entendemos que por trás do abuso de drogas estão fatores como a pobreza, o desemprego, a história familiar, a depressão ou mesmo o desejo.
Graças a essa mudança de paradigma - as drogas não são más, a relação que se estabelece com elas é que pode ser boa ou má - temos conseguido caminhar, muito lentamente, para longe da guerra às drogas e construir contextos de acolhimento para quem precisa.
Se queremos seguir o exemplo de países que trocaram a proibição das drogas por modelos regulatórios, por que essas mesmas pessoas se recusam a ver com bons olhos a regulação da prostituição? Por que se referem ao PL Gabriela Leite como o PL da cafetinagem? Que se faça críticas, vá lá. Mas jogar o único projeto decente no lixo em nome do proibicionismo é um equívoco sem tamanho.
Já basta de tratar as putas com condescendência, de falar com elas do alto da nossa generosidade branca. Precisamos parar de dizer a elas o que é melhor pra elas. Não é admissível dizer que uma profissão exercida por 42 milhões de pessoas, com toda a diversidade que cabe dentro desse número enorme, deve ter como única resposta a extinção. Que possamos encontrar no debate sobre prostituição a diversidade que o Feminismo tanto valoriza. Que possamos ouvir Amara Moira, Monique Prada e tantas outras mulheres que têm falado sobre o tema com propriedade e conhecimento de causa.
Sobretudo, que a gente não seja e não veja umas nas outras nem a donzela na torre nem a bruxa, nem Eva nem Lilith, porque nós somos muito mais complexas do que qualquer fábula do patriarcado jamais dará conta de descrever.

* texto originalmente publicado aqui
Reflexões de uma lagarta no Facebook

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Mas e o feto?

[Se você precisa de um aborto, esta organização pode te ajudar]

"Mas, gente, e o feto?". Atreva-se a fazer essa pergunta em um papo com feministas! Mas atenção: recomendo antes verificar se as saídas de emergência estão desobstruídas, porque a reação vai ser braba. Se for em grupo de Facebook, então, aí é que a coisa engrossa mesmo. É que quando você pergunta "mas e o feto?", boa parte das feministas escuta outra coisa. Elas automaticamente supõem que você é contrário à descriminalização do aborto - uma posição inadmissível dentro do movimento. O curioso é que as condições básicas para que aconteça um aborto são as seguintes: 1) uma mulher; 2) um feto. Mas o Feminismo, salvo exceções, não topa discutir o item 2. Será medo? Será que temos medo de encontrar em um fundo de gaveta algum sentimento, algum pesar pela vida do feto? Será que estamos tentando tapar a vozinha que sopra "mas ele também tem direitos..."?



Não consigo compreender a recusa em falar sobre o feto como outra coisa que não uma defesa contra as respostas que o Feminismo não quer enxergar. Nós já estamos cansadas de ler, ouvir histórias e assistir a documentários sobre as mulheres que morrem por conta de abortos inseguros. E devemos continuar repetindo essas histórias, porque essas mulheres existem. Mas, companheiras, o feto também existe. Existe enquanto realidade concreta e existe na dimensão simbólica, seja na recusa das feministas (recusar é atestar a existência) ou na empatia infinita daqueles que sofrem pelos fetos abortados. A pergunta está na mesa, irmãs. É nosso desafio aceitá-la. É o único caminho possível para comprovar - ou seria verificar? - que a legalização do aborto é a única solução humana. E se a gente refletir sobre o feto e chegar à conclusão de que seus direitos devem prevalecer sobre os da gestante, que seja! Esquivar-se de um debate por medo das respostas no caminho é desonesto. Simplesmente coisa que não se faz. Dito isso, sigam-me os bons!



A primeira coisa a ser dita é que, ao contrário do que se costuma crer, a discussão sobre aborto não é uma discussão sobre o direito à vida. Nós não temos problemas com a morte de células - como os óvulos e espermatozoides, por exemplo - e de plantas - dos eucaliptos de que fazemos portas e papeis até a salada. A maioria de nós não tem problema sequer com a morte de bois, galinhas, porcos, peixes e outros animais que saboreamos diariamente. Sim, o feto é uma vida. Ponto pacifico. Mas não, o problema do aborto não é matar uma vida. Então qual é o problema? Apertem os cintos que vamos começar a complicar a parada.



A turma que não curte abortos gosta de falar em abortos como "o assassinato de um bebê inocente". É assim, de fato, que elas percebem um aborto. E, gente, nós também achamos que o homicídio de um bebê é crime dos mais tenebrosos, confere? Todo mundo no mesmo pé? Avante, feministas, que chegamos ao ponto culminante: o que precisamos buscar entender é a diferença entre um feto e um bebê - se é que há diferença, não vamos começar com ganho de causa pra nenhum dos lados! Essa questão é o pote de ouro no final do arco íris desse debate! Para o alto e avante!

Pode elencar o que você quiser: capacidade de amar, de sentir empatia, de sentir dor, de se comunicar. Cidadania, pensamento, imaginação, racionalidade. Você pode pensar em qualquer característica que permita que você diga: "se o feto tem isso, então é um bebê". Eu te desafio: qualquer aspecto no qual você pensar vai depender completamente da existência de uma estrutura fisiológica chamada sistema nervoso central. Falando bem toscamente, é o que temos dentro da nossa caixola e da coluna vertebral: cérebro e medula. Eu sei que a gente gosta de pensar que somos seres transcendentais e que nossa luz seguirá se derramando pelo universo além da eternidade, mas até onde a ciência pode comprovar - eu sei, a ciência não é perfeita, mas ela é bem legal, vai - somos feitos de matéria e energia (não a dos duendes, a dos átomos), e até nossos mais psicodélicos sonhos decorrem de uma interação físico-química. Sonhos, aliás, são exemplos de fenômenos que não existem sem sistema nervoso central. Nós não sabemos ao certo se gatos e vacas sonham (todos os mamíferos têm sistema nervoso central), mas nós temos bastante certeza de que árvores e ostras não sonham. E nós também temos certeza: fetos não sonham, não amam, não sentem empatia ou dor, não se comunicam. Não têm cidadania, pensamentos, imaginação, racionalidade. 

Com 8 semanas. Você pode achar fofo; ele ainda não pode achar nada.
Pode parecer frio pensar no feto como um reles organismo. Tenho amigas que planejaram suas gestações e amaram seus fetos a partir do instante em que o xixi fez aparecer dois risquinhos no teste de farmácia. É que as minhas amigas têm sistema nervoso central, e quem tem sistema nervoso central - vejam que bonito - tem capacidade de amar o que for: fetos, animais, dinheiro, a poltrona da bisavó. Há até quem ame ideias extremamente complexas como o universo, o anarquismo ou algum deus. Mas o feto, embora esteja crescendo e se alimentando na barriga da gestante, não pode corresponder ao afeto que os adultos ao redor da barriga eventualmente dediquem a ele, tanto quanto nenhuma das minhas preciosas orquídeas pode me amar de volta. Eu sei que é tocante ver aquelas imagens dos fetos dentro da barriga. Eles parecem tão humanos, com seu bracinhos de tiranossauro e sua cabeça desproporcional e translúcida! Mas essa é só uma imagem que nosso sistema nervoso central, via de regra, traduz como digna de afeto. É bonito que sejamos capazes de sobrepor aos fatos os mais diversos afetos, mas é tolo negar os fatos. Os fetos podem vir a ser milhares de coisas. Eu e Hitler, você e Gandhi, todos já fomos fetos. Mas para falar sobre aborto precisamos nos referir não ao que o feto pode se tornar, mas ao que é. 

Fato: não existe nenhum conflito moral no aborto de um feto sem sistema nervoso central formado. É por isso que a lei que se discute hoje no Brasil (fiquem tranquilos, não tem nenhuma chance de passar) autoriza o aborto até a décima segunda semana de gestação. Essa data é apontada pela Medicina como o marco após o qual o feto já seria capaz de sentir, uma vez que seu sisteminha nervoso central já estaria lá. Tem gente que é a favor do aborto mesmo depois disso, mas aí a discussão é outra. Aqui eu falo sobre o parâmetro que balizou as legislações de praticamente todos os países que descriminalizaram o aborto. Falo sobre a questão que já foi exaustivamente debatida em todos os tribunais internacionais que se prezem: aborto até a décima segunda semana, gente, tá tranquilo, tá favorável. 

Pra finalizar, faço um apelo às irmãs de luta para que enfrentem as perguntas de quem discorda de nós. Nós precisamos respondê-las, e precisamos inclusive pautá-las. Você deve ser capaz de olhar nos olhos do feto, e se encontrar lá alguma poeira de humanidade - mesmo que seja por motivos religiosos - você precisa se perguntar se é realmente a favor do aborto. E se você não for, tudo bem. Você não é um monstro por isso. Mas nós precisamos fazer isso se queremos engordar o nosso movimento lindo com conteúdo sólido, com conceito, com argumento dos bons! E se o nosso argumento não for o mais forte, que a gente possa mudar de ideia. Mudar não é vergonha. Vergonha é passar a vida bebendo certezas fáceis e recusando as perguntas que incomodam.


Reflexões de uma lagarta no Facebook

terça-feira, 31 de maio de 2016

Boas garotas não são estupradas vol. II

por Letícia Bahia


A situação é epidêmica. De fevereiro a abril deste ano o Ministério da Saúde registrou pouco mais de 91 mil casos de zika. Antes disso, em dezembro passado, a Organização Mundial da Saúde emitiu alerta global sobre a epidemia. Mas, apesar da comprovação da relação entre o vírus na gestação e casos de microcefalia, é outra a epidemia que tira o sono das mulheres. 

Estima-se que 527 mil tentativas ou casos de estupro ocorram todos os anos no Brasil. É bom repetir, pra que se registre a ferro: estima-se que 527 mil tentativas ou casos de estupro ocorram todos os anos no Brasil. A informação é de relatório do IPEA. Siga comigo que vai piorar: O cálculo pra se chegar a esse número leva em conta o número de estupros reportados e uma série de outros dados, analisados e combinados a partir de metodologias estatísticas que estão longe da compreensão da maioria de nós. Pra quem quiser se arriscar, o processo está descrito no link acima. Pra quem quiser se estarrecer, destaco um trecho: 

"essa estatística [527 mil tentativas ou casos de estupro] deve ser olhada com bastante cautela, uma vez que (...) talvez a metodologia empregada (...) não seja a mais adequada para se estimar a prevalência do estupro, podendo servir apenas como uma estimativa para o limite inferior de prevalência do fenômeno no país".

Veja estes objetos
"Limite inferior". Em português claro: o Brasil é palco de pelo menos 527 mil estupros ou tentativas de estupro a cada ano. É bom repetir, pra que se registre a ferro: o Brasil é palco de pelo menos 527 mil estupros ou tentativas de estupro a cada ano. Para aqueles que se chocaram diante dos 30 estupradores da jovem carioca cujo vídeo circula nas redes sociais, apresento este outros 526.970. Já é o suficiente para o alerta de epidemia? Podemos chamar os bombeiros, o exército, pedir ajuda à ONU, cogitar o cancelamento das Olimpíadas? Podemos, finalmente, encarar a questão com a devida seriedade, estampar manchetes dignas de epidemia e deixar de lado o medo de soar politicamente correto ou feminista "demais"? Podemos, finalmente, falar sobre cultura do estupro, esta estrutura social que, em um processo contínuo e recíproco, nos forja e é forjada por nós, e que não poderia resultar em outra coisa além de uma verdadeira epidemia de estupros?

Veja que belos enfeites
Não creio que a maioria de nós esteja pronto para essa urgente tarefa. A maioria de nós não se inclui no pacote "sociedade" de modo que não reconhece como (também) sua a cultura que critica. É marca do brasileiro deixar para lá suas mazelas. Nunca passamos a limpo nosso passado escravocrata. Também continuamos pagando os juros da fatura não quitada da ditadura militar. Por que seria diferente com as mulheres? O contador de estupros aumenta sem parar. A jovem carioca é uma, uma entre centenas de milhares que virou notícia. Talvez alguns de seus agressores sejam presos, mas pouco importa. Já já o frenesi vai passar e as redes sociais vão respirar aliviadas porque ufa!, aquele caso isolado ficou pra trás. É sempre assim, e enquanto for assim, nós, feministas, seguiremos estudando, analisando e sabotando essa estrutura. Para aqueles que querem refletir sobre essa estrutura que chamamos de cultura do estupro, que abram-se os portões. 

Veja sem moderação
A primeira coisa que fazemos quando recebemos a notícia da existência de um bebê é especular sobre o sexo. Antes mesmo de saber o nome, sabemos o sexo. É sempre a primeira pergunta que se faz a alguém que segura um bebê. A divisão homem-mulher, apesar de estar muito longe de dar conta de toda a nossa complexidade, é, ainda hoje, muito fundamental. E para garantir sua continuidade é preciso reafirmar e manter a diferença entre estes dois grupos. Nós (e isso me inclui e te inclui) fazemos isso por meio do que o Feminismo chama de socialização feminina ou masculina. A fábrica da socialização masculina treina os meninos para a agressividade, para o uso do corpo, para a competitividade, para cultivar e exercer o desejo sexual, para revidar, para falar mais alto, para não admitir traição. Já nós, somos treinadas para o recato, para não reagir, para habitar o medo, para sermos belas, para hipervalorizar o desejo do homem que se atrai por nós, para falar baixo, para não conhecer nosso corpo. Isso se dá por meio das brincadeiras, da imitação de comportamentos, de falas corriqueiras. Repare como tratamos meninos e meninas de forma diferente. "Que bonito o seu vestido, Maria!". "Que bacana o seu carrinho, João!". "Maria está parecendo uma boneca!". "Qual o herói favorito do João?". 


Veja que sexy
Os exemplos estão por todos os lados. Eu sei que em um primeiro momento pode parecer besta pensar na Branca de Neve como elemento da cultura do estupro, mas quando você se dá conta do quanto mensagens como essa são repetidas, você começa a ver a imagem que as milhares de peças do quebra-cabeça formam. Branca de Neve (e sua colega Bela Adormecida) é uma entre as tantas mulheres que habitam o universo infantil na forma de uma relação abusiva, na qual ela tem um papel passivo. Pouco ou nada se sabe a respeito do que ela pensa e sente, inclusive (e principalmente) na hora do beijo. Pense nos valores que estão postos nessa história e veja se você consegue pensar em histórias nas quais o homem é quem está nesse lugar. Nenhuma, né?  Não estou afirmando que um garoto vai se tornar um estuprador apenas porque assistiu um pornozinho no RedTube, mas precisamos reconhecer que a repetição de ideias que fundamentam um estupro, embora não sejam suficientes pra formar um estuprador, claramente estão deixando sua marca - em 527 mil casos por ano. 

Vamos pensar na socialização como uma fábrica de brinquedos. Se você submeter todos aos mesmos processos, utilizar os mesmo materiais, pintá-los com as mesmas tintas, eles certamente terão um aspecto final bastante homogêneo, certo? Um ou outro pode dar errado, mas isso não vai fazer você modificar sua linha de produção. Agora imagine que você tem muitos, muitos brinquedos quebrados. Não sei, talvez uns 527 mil por ano. É muito brinquedo quebrado, concorda? Será que não é o caso de verificar a procedência da matéria prima, testar o maquinário da fábrica ou contratar novos engenheiros? Será que não é o caso de pensar o que está acontecendo no processo de fabricação ao invés de tentar consertar tanto brinquedo quebrado?


Veja quanto glamour
A engrenagem dessa fábrica - é preciso que reconheçamos - somos todos nós. A cultura do estupro não é um estupro. É um equívoco se deparar com casos como o da jovem carioca e classificá-lo como cultura do estupro. Aquilo ali se chama crime, e é apenas o sintoma mais cruel de um processo cultural muito maior, corriqueiro e não criminoso (embora repugnante). A cultura do estupro é a repetição e a naturalização de valores que estruturam um estupro. Penso que seja fundamental fazer essa diferença, porque fazer uma leitura a partir do conceito de cultura do estupro (em detrimento de análises isoladas e posteriores a cada caso) é o que vai nos permitir adicionar outros temperos a este caldo cultural e, finalmente, produzir conceitos de feminilidade e masculinidade (enquanto precisarmos deles) que sejam baseados não em hierarquia e submissão, mas na na valorização da diversidade. Quando a gente tiver chegado lá e nosso contador de estupros crescer na velocidade de uma Islândia, aí talvez a gente possa se chocar diante de um caso como o da jovem carioca. Daí talvez a gente possa se perguntar "como?" e "por quê?". Hoje não. Hoje a gente já tem boas pistas de como e porque. Então é o caso de olhar ao redor e apontar tudo que possa ser lido como cultura do estupro. Não para proibir - o estupro já é proibido, lembram? - mas para promover a mudança cultural de que a gente precisa. 

Veja o que elas merecem
Não estou dizendo que não deve haver punição para estupradores. Sou frequentemente questionada a esse respeito. Respondo sempre que sou contra o endurecimento das penas, mas respondo a contragosto, porque perguntar o que devemos fazer com os homens que estupram rouba o tempo e a energia que devemos destinar a descobrir como parar de produzir estupradores. 527 mil estupros anuais é o que se pode chamar, sem metáforas, de linha de produção de estupradores. A internet está infestada de comentários descrevendo as torturas que deveriam ser impostas aos 30 agressores, mas a que isso se presta, se a fábrica segue operando a todo vapor? Nada muda, porque o problema é estrutural. É por isso que precisamos transcender a fase do estômago e pensar com a cabeça, desenvolver estratégias e compreender que não tem milagre: qualquer mudança vai demorar.     

Vejamos o exemplo da cultura do consumismo. Essa é uma expressão já amplamente aceita, e usá-la como ferramenta de combate ao consumo exacerbado significa pensar que o inimigo é uma cultura e não uma fábrica de brinquedos ou de automóveis. Então, o que você vai fazer é conversar com seus filhos sobre isso, levá-los ao mercado e discutir as compras junto com eles, se certificar de que a escola está abordando essas questões, conversar com ele sobre sobre o que ele está absorvendo do que assiste na TV. Você pode até tentar fechar o shopping center da sua cidade, mas esse me parece um caminho pouco inteligente...  


Veja que delícia
Pouco a pouco o Feminismo vem conseguindo algumas mudanças - embora a cultura do estupro, em suas mais diversas dimensões, ainda esteja bem longe do mainstream. A representação da mulher nas histórias infantis vem mudando, as propagandas vem mudando. Falta muito, mas estamos caminhando. 


E bom, se estamos falando de transformar um cultura, você pode começar agora. Não é preciso esperar o próximo estupro midiático. Ele virá, tenhamos certeza, mas você deve se perguntar se quer ser parte do problema ou parte da solução. No caso da segunda opção, prepare-se: você será o chato do Facebook, o radical da família, o mala dos grupos de Whatsapp. Uns me chamam até de petista - eu rio. 

Ser parte do problema é fácil. Basta seguir sua vida e esperar a poeira desse caso baixar. Não demora. O assunto vai desaparecer da mesa do bar e você poderá continuar repetindo suas frases e comportamentos machistas, como todo nós fazemos em algum grau. Fazer parte da cultura do estupro não é muito uma escolha, porque a gente nasceu e cresceu embebido nela. A escolha está em ser um crítico, inclusive de si próprio. 



"Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro se tornar cinzas?"
Friedrich Nietzsche


  





quinta-feira, 12 de novembro de 2015

As Anas e Marias que descobriram o aborto seguro

por Letícia Bahia



A notícia da gravidez caiu como um caminhão de entulho sobre os ombros de Ana. O salário baixo mal pagava a farinha dos 3 filhos. O marido estava desempregado e andava flertando com a bebida. Desesperada, ela pediu ajuda a Maria. Anos antes, Ana soube que a vizinha também estivera grávida, e fez coro aos que julgaram a mulher pelo misterioso desaparecimento daquela gestação. Maria semi-sorriu condescendente, metade vingada, metade solidária. "Tem um jeito", confidenciou, "e não precisa de doutor". Contou a Ana o que alguma outra Maria tinha lhe contado dois anos antes: bastava comprar na farmácia os comprimidos - "uns 6, 8" - que resolveriam a barriga. "Vai doer", advertiu, "vai sangrar. Mas é assim mesmo", arrematou.   

As Anas e Marias que descobriram e disseminaram o aborto seguro no boca a boca se perderam no tempo, mas o legado que elas começaram a construir segue ajudando mulheres cuja escolha o Estado tenta, em vão, roubar. Essas mulheres não eram médicas e talvez não fossem feministas. Foram brasileiras comuns, anônimas, que descobriram meio sem querer o método mais seguro para interromper uma gravidez.


Um relatório publicado em 2008 pela Organização Mundial da Saúde em 2008 estima que 21,6 milhões de mulheres se submetem anualmente a uma das inúmeras formas de aborto inseguro - 85% deles acontece em países em desenvolvimento, como o Brasil. E, apesar de tudo que a Medicina já sabe sobre a eficácia e a segurança do aborto seguro, anualmente 47 mil desta milhões de mulheres morrem por complicações decorrentes de interrupções inseguras da gravidez.

Fonte: Organização Mundial da Saúde


A história do aborto seguro começa em 1986, quando o Brasil aprovou a comercialização de um medicamento para úlcera. Na bula, lia-se que o remédio não deveria ser usado por gestantes. Apesar disso - ou exatamente por causa disso -, Anas e Marias desesperadas por um aborto começaram a usar o Cytotec. Funcionou. De maneira espontânea, descentralizada e orgânica, os rumores sobre a pílula do aborto espalharam-se em velocidade espantosa. Não foi a internet nem a televisão, mas a necessidade das brasileiras a responsável pelo rápido crescimento nas vendas até o primeiro semestre de 1991, quando o Ministério da Saúde impôs restrições drásticas a sua comercialização. A utilização do misoprostol - princípio ativo do Cytotec - como método abortivo chegou a tal ponto que, em 1990, cerca de 70% da mulheres hospitalizadas por conta de abortos relataram o uso da droga. 


A experiência das mulheres brasileiras chamou a atenção da comunidade médica, que finalmente começou a estudar as propriedades abortivas do medicamento da Pfizer. Hoje, o misoprostol está na lista de medicamentos essenciais da OMS. O aborto com os comprimidos, embora doloroso, tem alta eficácia e baixo risco, sobretudo quando combinado com mifepristona, droga que também está na lista da OMS.


A intervenção do estado brasileiro inventou um mercado negro de comprimidos cuja eficácia não é passível de comprovação, e uma pesquisa conduzida pelo especialista em Saúde Pública e professor adjunto aposentado do Instituto de Medicina Social da UERJ, doutor Mario Monteiro, estima que em 2013 cerca de 700 mil brasileiras recorreram a um aborto inseguro.


As brasileiras que inventaram o aborto seguro perderam-se na História, e certamente não sabem quantas vidas já salvaram desde os anos 80. Diante da impossibilidade de recorrer ao estado e à Medicina, brasileiras comuns, sem formação específica, descobriram e disseminaram organicamente uma solução que lhes devolveu a autonomia sobre o próprio corpo. Apesar da dor - física e emocional - e dos riscos que elas desconheciam, nossa Anas e Marias foram e continuam sendo a prova viva - ou morta - de que quando mulheres se deparam com uma gravidez que não é bem vinda, elas recorrem ao aborto ilegal, qualquer que seja o custo para sua saúde. Sem o respaldo das instituições que deveriam ajudá-las, elas descobriram uma solução. Até quando seguiremos na clandestinidade?







quarta-feira, 30 de setembro de 2015

"Quero o cheiro da tua orquídea em mim de novo"

por Letícia Bahia



Eu fiquei sem palavras quando me chegou essa mensagem de texto. Nós tínhamos passado um final de semana apaixonante no litoral, e no começo da semana a declaração que eu recebi por SMS terminou assim. Foi a primeira vez que a paixão de um homem por mim incluiu minha vagina. 


Todas nós, mulheres que trepam com homens, sabemos o quanto é raro encontrar um parceiro sexual que trate sua vagina como algo além de uma caverna para enfiar o pinto. Não estou me referindo ao fato de que muitos homens ignoram que há uma mulher atrás da vagina. Falo de uma relação ambígua, que mescla desejo com notas de misoginia. Falo de homens transbordantes de uma virilidade plástica, fabricada em série, mas que nunca pediram a uma mulher que abrisse as pernas para simplesmente contemplar sua vagina. O sexo com esses homens desperdiça o corpo, pois se faz apenas com genitais. Eles não sabem o que é esfregar a coxa em uma vagina, lambuzar-se com ela, respirar seu cheiro e, na hora de finalmente deixar-se engolir, cometer a loucura de ser um humano inteiro, entregue aos sentidos e ao outro, ainda que o outro seja um estranho. 


Nós ficamos bom pacas em forjar nos rapazes essa heterossexualidadezinha de merda. Sim, porque como se sabe, a heterossexualidade é algo atravessado pela cultura e, portanto, algo que se fabrica. Se você me vier com Darwin e o papo de que é preciso juntar óvulo e espermatozoide pra fazer um bebê, eu te devolvo com Simone de Beuvoir: "não se nasce mulher: torna-se". A cópula a que você se refere - cujo objetivo é tão somente a perpetuação da espécie - é só um pedacinho do sexo dos humanos. Descreve apenas nosso aspecto biológico. E é verdade que somos machos e fêmeas, como qualquer bicho, mas somos também algo que é expressão única do bicho homem, este ser cultural: nós somos também homem e mulher, menino e menina, rapaz e moça. Essa dicotomia representa a dimensão cultural do sexo biológico. Explico: nasce a fêmea humana, pinta-se o quarto de rosa; nasce o macho, o pai compra a camisetinha do time. Coisas de menina: boneca, casinha, afetividade, frescura, flor, estrela, delicadeza, coração... Menino: carrinho, futebol, ser estabanado, arma, carregar peso, falar palavrão... Com esse treino intensivo desde útero, não espanta que a gente tenha como resultado machos e fêmeas tão diferentes - mais diferentes do que em qualquer outra espécie. 


Nesse contexto, a transsexualidade chega como prova cabal de que o gênero - nome que se dá à dicotomia homem/mulher, e que tem mais do que duas variações para alguns teóricos - é cultura. É para estourar a champanha quando uma criatura que nasceu com pinto diz: "eu sou mulher". Você pode não gostar, pode ter nojo, pode querer assassiná-l@s (cuidado, dá cana), mas el@s existem e estão aí reafirmando a possibilidade de coexistência pacífica entre ter no meio das pernas um pênis - sexo biológico: macho - e ser fofoqueira, gostar de novela, mandar bem em humanas, ser sensível, usar vestido, e todo o sem fim de elementos que, em cada época, em cada cultura e em cada indivíduo nos fazem identificar alguém como pertencente ao gênero mulher. Não há contradição na transsexualidade, há apenas o rompimento da norma que associa, necessariamente, mulheres a fêmeas e homens a machos.

Mas onde é que a vaginofobia dos meninos entra nisso? Pois é. Faltou falar que somos todos, homens e mulheres, treinados para gostar do gênero oposto. Se você é do rolê feminista, você certamente já ouviu a expressão "heterossexualidade compulsória". Foi isso que sua professora reproduziu quando perguntou pra você, garoto, se aquela menina com quem você sempre andava de mão dada na escola era sua namoradinha. É esse o pano de fundo que está por trás da pergunta "como você reagiria se seu filho te contasse que é gay?". Falo da noção de que ser heterossexual é a norma e ser homossexual é um desvio. E, se a heterossexualidade é treinada, se é da cultura, se se refere infinitamente mais às relações entre homens e mulheres do que entre machos e fêmeas, então é importante que a gente se pergunte:  como é essa heterossexualidade para qual estamos treinando os rapazes? Entre muitas outras coisas nocivas, ela é vaginofóbica.

Não haveria como ser diferente: se o mundo é machista desde que o mundo é mundo, e se o mundo entende que vagina é coisa de mulher (mas você já entendeu que é coisa de fêmea, certo?), é claro que um comportamento afetivo-sexual tido como normal não vai ficar enaltecendo a vagina. 

Nós também somos treinadas para não gostar muito da nossa vagina. As mulheres não se tocam, não se olham no espelho; a masturbação feminina é um tabu enorme; a indústria da ~beleza~ vende sabonete para disfarçar o cheiro da vagina; temos vergonha de falar da nossa menstruação; depilação na virilha (virilha, no caso, é eufemismo) é praticamente obrigação. Sim, nós também desempenhamos nosso papel nesse mundo que não gosta de vaginas. 

Agora repare como as vaginas aparecem nos filmes que os meninos assistem do RedTube. Veja como eles se relacionam com elas: é pôr pra dentro e próxima! Até conhecer uma vagina de verdade, a maioria dos moços só terá visto vagina depiladas, escolhidas de acordo com critérios da misógina indústria pornô e a serviço de um prazer masculino que, se envolve vagina, é com penetração no modelo britadeira. Não é de se espantar que eu tenha me encantado pelo moço que queria se impregnar com o cheiro da minha orquídea!

E como a gente muda isso? Como a gente faz pra desconstruir esse nojinho misógino que tantas vezes aparece na cama de um casal hetero? Gosto de pensar o Feminismo como um movimento que inclua homens, e nesse sentido acho fundamental que você aí, colega que tem medo de vagina, vá procurar na sua história como é que foi acontecer de você aprender a ter nojo daquilo que supostamente te atrai. Mas o protagonismo da luta é nosso, e nós não vamos esperar sentadas. Minha proposta é que a gente assuma nossas vaginas com todo o amor que lhes cabe. Proponho que a gente dê um vibrador pra todas as amigas que fizerem aniversário, que a gente crie mais e mais fóruns pra discutir menstruação. Proponho um relacionamento sério, honesto e amoroso com nossas próprias vaginas. É preciso conhecê-la profundamente, quiçá fotografá-la, filmá-la. Você já viu sua vagina? Desejo que a gente repense a depilação, esse procedimento tão doloroso, e procure se acostumar com o fato de que vaginas têm cheiro de vagina. Torço pra que a gente consiga olhar com desconfiança para esses amores que não se estendem a esse pedacinho tão essencial de nossos corpos. 

Não é nada fácil - eu sei, e sei porque vivo. Mas não há outro caminho. Se não fizermos a nossa parte, pode até ser que a reflexão dos meninos funcione e eles decidam que - plin! - vão amar nossas vaginas como elas são. Mas se assim acontecer, nós estaremos mais uma vez nos subordinando a uma construção dos homens. Não é o que nós queremos, é? É preciso que a gente se enxergue com olhos de mulher, que a gente realize a revolução de descobrir a semelhança maravilhosa que existe entre uma orquídea e uma vagina.          






quinta-feira, 23 de julho de 2015

A liberdade é maior que o gênero

por Letícia Bahia



Comemorávamos os trinta e poucos anos de uma amiga. As mesas do boteco já não comportavam o tanto de gente que queria tomar cerveja, e naquele começo de noite, como em tantos outros, a esquina da Fradique com a Inácio Pereira da Rocha estava lotada de gente alegre e barulhenta. Eu, cerveja numa mão e cigarro na outra, debatia acaloradamente as intersecções entre Feminismo e movimento negro. Foi quando a vi. 

Na verdade, não havia quem não tivesse se interrompido para notá-la. Chegou cantando e dançando como se sua vida fosse um musical. Purpurina nos olhos e jeito espetaculoso, segurou no poste da esquina e ropodiou cantando uma música da qual jamais me lembrarei. Cativante e sabendo-se em terreno amigável, bradou: "eu sou mulher!". 

Depois dos aplausos que sucederam a grande performance, começaram as pequenas: borboleteava em cada grupo interpelando os bêbados, fazendo piada e repetindo o bordão: "eu sou mulher!". Foi ovacionada em todas as rodas. Mas quando chegou minha vez, não lhe ofereci aplausos. "Eu sei", respondi. Ela abandonou a performance e me olhou em confuso espanto. O desconcerto passou tão rápido que talvez eu nem o tivesse percebido, porque na sequência ela retomou o musical e voltou a borboletear com os boêmios. Mas pouco depois, ela voltou.

Voltou sem os olhos de palco, pôs a mão no meu ombro e disse com sinceridade: "gostei de você, gata!". Ela foi dizer isso logo pra mim. Ela, a rainha da noite, para mim, que na próxima vida quero ser atriz da Brodway. O que eu poderia responder? Disse apenas que o sentimento era recíproco e puxei a próxima música do número. Ali, acobertadas pela cerveja, eu e ela fizemos o nosso musical. 

Como não sei sequer seu nome, nunca saberei ao certo porque ela gostou de mim. Mas suspeito que a resposta esteja em seu desconcerto. 

Ela pediu aplausos no lugar certo. Tivesse ido ao centro da cidade ou ao Itaim Bibi, teria talvez recebido insultos de baixo calão, ou talvez olhares de repúdio daqueles que se supõem elegantes demais para ofender - mas não para odiar. Mas a esquina do bar do seu Zé é generosa com a diversidade, e ela recebeu os aplausos que saiu pra colher. 

Mas de mim acho que ela ganhou algo que não esperava. Eu não dou a mínima se ela é mulher. Dentro da minha micropolítica utópica, tanto faz o que ela tem no meio das pernas ou a letra que representa seu segundo cromossomo. O caminho de liberdade no qual acredito passa pela desconstrução dessas duas caixinhas nas quais colocamos as pessoas quando elas ainda moram em úteros: "é menino ou menina?". É pessoa, pombas! Que tenha a possibilidade de explorar ao máximo todo seu  potencial, e que a cultura não lhe roube a possibilidade de usar sapato de salto porque nasceu com pênis, nem que torne mais íngreme o caminho da menina que quer ser engenheira. 

Mas o mundo não é assim e, mais do que eu, ela sabe disso. Precisa solicitar sua credencial de mulher. Se concedemos o crachá, autorizamos o cor de rosa; caso contrário, ai dela se não ficar no azul. 

É claro que seu corpo encerra fatos. É claro que não vai sentir cólicas menstruais, que seios não lhe crescerão espontaneamente e que nunca conhecerá as dores do parto. Talvez sofra por isso, e se esse for o caso o único remédio é o conformismo. O corpo impõe limites intransponíveis a todos nós, sendo a morte o mais democrático deles. Sendo tão pesado esse fardo, por que então inventamos e impomos a pessoas como ela correntes imaginárias? Será que precisamos sustentar a ilusão de que não somos todos apenas humanos? 

Por qualquer razão que seja, fato é que hoje se vive sobre a regência dos papéis de gênero. E eu não gosto de papéis de gênero, porque eles trazem consigo um roteiro mais ou menos fechado de como deve ser a vida do indivíduo a partir de uma imposição biológica, quando muito mais legal seria a gente poder escolher entre tudo aquilo que os limites do corpo não proíbem. 

Não é delírio, é sonho: houve já um tempo em que acreditamos que a quantidade de melanina na pele de alguém tinha relação direta com seu potencial cognitivo. Hoje, no entanto e felizmente, racismo é crime previsto em lei, e apesar de isto estar longe de significar sua erradicação, eu e muita gente entendemos que a quantidade de melanina serve apenas pra balizar o fator de proteção do filtro solar - porque afinal, das prisões do corpo não se pode escapar. 

Naquele pedacinho de noite, o sonho real que eu vivi - e que nunca saberei se coincide com o dela - era assim: agora não importa minha vagina ou o pênis dela. Se queremos dançar, que dancemos! Que ela cubra-se de purpurina se quiser brilhar! Quer usar saia ou vestido? Tenho muitos pra emprestar! 

Pode isso, e pode o contrário e pode misturado também.
Acho que o que eu disse a ela, meio sem querer, é que por mim ela poderia rodar sua saia a noite toda. Não porque é mulher, mas porque é uma pessoa que assim deseja. Eu lá preciso colocar gente em prateleiras pra dizer o que podem ou não? Se meu sonho é justamente cortar os fios que ligam o rosa à mulher e o azul ao homem, a flor à menina e a espada ao menino, a brutalidade aos garotos e às garotas a ternura. Eu quero mais é emaranhar essas cordas feito gato brincando com novelo de lã. Se eu sonho com a liberdade e com a não imposição deste ou daquele gênero a este ou àquele cromossomo, como poderia me colocar em posição de referendar a escolha de uma identidade restrita ao que hoje o mundo entende que é permitido para este grupo chamado mulher? 

Eu quero mais é que todo mundo possa tudo, ora bolas! Garçom! Traz mais uma cerveja e aumenta o som que a gente quer é dançar!




segunda-feira, 18 de maio de 2015

Mamilo Livre


Foram impecáveis os seguranças do MIS em seu entendimento dos códigos de conduta considerados socialmente aceitáveis para homens e para mulheres. Esses códigos normalizam o tratamento diferenciado para homens e mulheres, apesar de contradizerem a Constituição Federal, em que lê-se no inciso I do artigo quinto, que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações". No caso, a regra assimilada e reproduzida pelo museu poderia ser enunciada mais ou menos assim: "homens têm direito de exibir seus mamilos em público. Mulheres não". Claro está que o valor desta regra se sobrepõe ao valor de nossa preciosa Carta Magna. E não sejamos ingênuos: rasgar a Constituição em favor da preservação dos valores que alicerçam o status quo não é novidade, é padrão. A título de exemplo, cito o inciso III do mesmo quinto parágrafo, que coloca todo um sem fim de ações policiais amplamente validadas pela sociedade e pelo governo [de Geraldo Alckmin, de Beto Richa...] na ilegalidade quando afirma: "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante". 

É penoso aceitar, mas nossa Constituição não está valendo mais do que tomates velhos em fim de feira. Dito isso, parece-me que o caminho para a libertação dos mamilos femininos passa por uma análise dos costumes. Mas antes, uma explicação se faz necessária.

Perguntam-me sempre por quê diabos eu encho tanto o saco por conta da proibição do topless feminino. "Você quer tanto mostrar o peito?", emendam. "Por quê tanto incômodo por uma luta tão besta, Letícia?". Minha vontade ou não de tirar a parte de cima do biquini é irrelevante. Não se discute direitos a partir do desejo do indivíduo de exercê-los, para só então validá-los. Você tem direito de ir e vir; se vai exercer esse direito ou se vai passar a vida enclausurado na frente da TV é problema seu. Direitos têm essa característica bonita: eles estão sobre a mesa para quem quiser se servir; é a escolha do indivíduo que dirá se o sujeito irá usufruir agora, daqui a pouco ou nunca. E se ele não estiver disponível sempre, deixa de ser direito. 

Eu mesma defendo alguns direitos dos quais jamais usufruirei. Defendo que homens tenham acesso a procedimentos diagnósticos e a tratamento para câncer de próstata; defendo que negros tenham os mesmos direitos que eu, branca. Você não?

Para falar sobre o desmerecimento da causa, uma postura tão comum quanto precipitada, é preciso compreender o sentido da proibição. Como em 99% dos tabus da humanidade, aqui também esbarramos na sexualidade. Glândulas mamárias todos temos, apesar de as femininas serem, em geral, mas com exceções, maiores do que as dos homens. Ocorre que, por mistério quântico, o tronco masculino costuma ser encarado com a mesma naturalidade de um braço ou uma orelha - partes da anatomia humana que em geral não têm conotação sexual, embora isso possa ocorrer ocasionalmente aqui e ali. Mas os seios não. Seios são sempre eróticos, sempre sensuais. Qual é o homem heterossexual que não se acende diante de um belo par de seios?

Fotos: Jared Polin e Patrick Demarchelier

Este é o retrato de hoje, mas é com imenso prazer que eu digo que não foi sempre assim. Eu já vou contar pra vocês como era, mas antes vamos abrir uma champanha, porque atestar a mudança de um comportamento é atestar, por tabela, sua natureza cultural. Se pode mudar significa que não é traço biológico, não está impresso no DNA humano. Isso é lindo, gente, porque quer dizer que a interdição dos mamilos femininos, na mesma medida em que foi construída, pode ser superada! Emocionei aqui. Retoma, Letícia.

Mary Del Priore, em seu Histórias Íntimas - sexualidade e erotismo na história do Brasil, afirma que a nudez no Brasil colonial não tinha o sentido erótico que conhecemos hoje. Na verdade, a nudez estava associada a índios e escravos, as figuras que valiam ainda menos do que hoje vale nossa Constituição. (Ainda bem que isso ficou pra trás, ufa!). Vamos às palavras da historiadora:

"Viajantes estrangeiros que passavam pelo Brasil, nessa época, ficavam chocados com a nudez dos escravos nas ruas. As poucas blusas que escorregavam pelo ombro, os seios nus, magros e caídos, escorrendo peito abaixo. E, contrariamente aos nossos dias, não havia lugar do corpo feminino menos erótico ou atrativo do que os seios. As chamadas “tetas”, descritas nos tratados médicos como membros esponjosos próximos ao coração, tinham uma só função: produzir alimento. Acreditava-se que o sangue materno cozinhava com o calor do coração, tornando-se branco e leitoso. Os seios jamais eram vistos como sensuais, mas como instrumentos de trabalho de um sexo que devia recolher-se ao pudor e à maternidade. O colo alvo, o pescoço como “torre de marfim” cantado pelos poetas, pouco a pouco começa a cobrir-se. E isso até nas imagens sacras. Estátuas da Virgem Maria em estilo barroco, antes decotadas, ou a própria Virgem do Leite – que no Renascimento expunha os bicos –, desaparecem de oratórios e igrejas." (p.12)

Madonna del latte, Antonio Alegri Correggio (1523)
Uma santa com o mamilo à mostra, por essa eu não esperava! Ali então, assim como aqui, decidiu-se que os seios precisavam ser cobertos. No entanto, a razão para essa conduta - uma quase repulsa! - não poderia estar mais distante da razão pela qual eu hoje não posso ir à praia sem parte de cima. Então era verdade que o mundo dá voltas...

Mas isto apenas não é suficiente para libertar os mamilos. O fato de haver códigos de conduta socialmente construídos não significa, em absoluto, que eles não tenham validade, ainda que limitada a tempos e espaços específicos. Voltemos então aos dias de hoje, em que seios femininos precisam ser escondidos por sua característica inerentemente sexual. Ok, Del Priore mostrou que essa característica não é atemporal, mas é o dado de realidade que se nos apresenta hoje. A pergunta importante, então, é: para quem os seios são sexuais? 

Diante da pergunta o patriarcado já começa a assobiar e fazer cara de paisagem, pressentindo que se aproxima o momento deste texto em que apontaremos sua culpa. Não há como escapar: é para os homens que nossos seios são depósito de desejos. E não me venham falar de lésbicas, que minoria oprimida não constrói status quo (embora possa colaborar na manutenção). O olhar masculino, então, se torna totalitário, e eu, mulher, também passo a compreender os seios como lugar erótico, mesmo não sendo erótico para mim. O lugar simbólico do mamilo feminino - e as condutas que daí derivam - definem-se, então, pelo olhar e pelo desejo do outro. As regras que ditam o que é ou não adequado para um corpo feminino são pautadas pela maneira como os homens o percebem. É tão didático, enquanto expressão do machismo naturalizado, que chega a ser bonito: a metade do mundo que não tem seios define como a metade do mundo que tem seios deve lidar com eles. E é tão eficaz que nós obedecemos sem questionar.

Robyn, Michelle e o Tata Top
Mentira. Nós obedecíamos sem questionar. Graças à pressão de grupos feministas, o Facebook passou a permitir fotos de mastectomias recentes e de amamentação. O movimento Free the Nipple cresce vertiginosamente nos EUA, e em dezembro passado a fundadora do movimento, Lina Esco, lançou um longa metragem de mesmo nome dirigido e estrelado por ela. A dupla americana Robyn e Michelle Lytle criou o Tata Top, o biquini que fantasia nossos mamilos de mamilos. O que falta? Falta tempo. Falta tempo de convivência com seios à mostra, porque ninguém sustenta um olhar sexual infinitamente. Você pode se espantar quando pisar os pés em uma praia de nudismo, mas passe lá o dia todo. Faça um pique nique, caminhe, tome sol e você verá que o pudor não sobrevive. É um paradoxo, mas aqui a cura para a doença e seu agente causal coincidem. Nós precisamos de mais mamilos, de mais seios, de mais tetas, de mais peitos. Nós precisamos compreender que erotizá-los é só uma das coisas que podemos fazer com eles, e que não é saudável fazer isso fora de contextos efetivamente - e consensualmente! - sexuais. E, sobretudo, nós todos, homens e mulheres, precisamos recusar essas definições sobre as mulheres que não partem das próprias mulheres. 

Assine aqui a petição para que o Facebook pare de censurar mamilos femininos.




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