quarta-feira, 4 de março de 2015

Por quê a camisinha feminina não entrou no BBB?

por Letícia Bahia


Nas últimas semanas, o espinhoso debate sobre prevenção de gravidez e DST/Aids voltou aos holofotes da imprensa, infelizmente cercado dos clichês de sempre. Dessa vez o estopim aconteceu no Big Brother Brasil, quando a participante Talita solicitou à produção do programa a segunda pílula do dia seguinte em menos de um mês. O cordão da turma do dedo de gesso rapidamente alinhou-se para colocar a moça no banco dos réus, repetindo de maneiras pouco criativas o bordão que parece nunca sair de moda: "mulher que transa não presta". Enquanto as hashtags da semana miravam suas lanças para a vagabunda da vez, uma discussão fundamental passou desapercebida inclusive pelas feministas, ocupadas demais em montar a defesa da moça - com justa razão.

Em resposta ao bafafá, a Rede Globo declarou que disponibiliza camisinhas masculinas aos participantes da atração, o que nos leva ao elefante camuflado na sala, à pergunta que ninguém perguntou: por quê não há camisinhas femininas na casa mais vigiada do Brasil?

Camisinhas distribuídas na rede pública
Lançados há cerca de 20 anos, os preservativos femininos nunca emplacaram. Para se ter uma ideia do fracasso, hoje eles representam menos de 1% do mercado mundial de preservativos. O problema se retroalimenta, na medida em que a baixa demanda desestimula investimentos em divulgação e pesquisa. Mas uma turma persistente não deixou que ela parasse de ser fabricada. Esse pessoal (eles existem, juro) acredita que mulheres têm direito de transar com quem quiserem, e preocupou-se em desenvolver mecanismos para que nós também possamos fazer sexo seguro. Nasceu aí a camisinha feminina, inaugurando a possibilidade de a mulher se proteger independente da vontade do parceiro.

Introduzido na vagina, o cilindro de borracha nitrílica oferece proteção ainda maior do que o preservativo masculino, já que cobre também a vulva. E tem mais: algumas mulheres relatam que o anel de borracha que fica para o lado de fora fricciona o clitóris durante o ato pecaminoso e, bem, nós sabemos o que acontece quando alguma coisa toca aquele pedacinho de paraíso, certo? Para os meninos que têm dificuldade para colocar a camisinha masculina também tem boa notícia. Muitos reclamam que o látex aperta, e às vezes a ereção esfria. Só que se o pênis não estiver operando na capacidade máxima, não dá pra vesti-lo, certo? Bem, garotos, o preservativo feminino também vai ganhar pontos com vocês. É que ele fica mais larguinho, portanto não aperta. Mas o mais legal é que a colocação pode ser feita inteiramente pela menina. Aliás, ela pode colocá-la até 8 horas antes da transa! O preservativo feminino permite que a mulher decida sobre o uso da proteção, retirando do homem o monopólio dessa escolha. Acontece, senhoras e senhores, que aparentemente ninguém está preparado para ver os rapazes partilharem seu reinado na cama.

A camisinha feminina tem a ver com a emancipação da mulher no campo da Sexualidade, com o exercício pleno das liberdades sexuais de que os homens já dispõem. É claro que isso não vai dar ibope. Quem é essa tal de Talita, que pensa que pode dispor de seu corpo como se seu corpo fosse seu? Não, as mulheres que respeitamos são como a mulher que na canção de Chico Buarque implora: "desfruta do meu corpo como se o meu corpo fosse a sua casa". 

Trabalhei quase dois anos com grupos de adolescentes no Instituto Kaplan e toda vez que eu perguntava quem deve ser responsável pela camisinha, a resposta imediata era uníssona: "o menino!". E prosseguiam dizendo que quem tem que saber colocar é o garoto e que mulher que anda com camisinha é porque saiu pra dar - e portanto é puta. O moralismo está enraizado a tal ponto que a forma do discurso reproduz a ideia de que liberdade sexual é coisa de homem, de modo que os bate-papos tinham predominância absoluta de colocações masculinas. As garotas assistiam caladas, porque falar sobre sexo, mulher também não pode. Esses jovens - e eu estou falando de milhares deles - têm hoje, em 2015, entre 13 e 18 anos. E, bem, eles adoram BBB.

Eu não sei se a Rede Globo e a produção do programa compreendem o tamanho deste absurdo. Na dúvida, explico: camisinhas femininas estão disponíveis gratuitamente para qualquer cidadão nos postos de saúde. A distribuição é parte da estratégia do Departamento de IST, Aids e Hepatites Virais do Governo Federal para conter epidemias como a do HIV, vírus que já infectou 656.701 de brasileiros desde 1980. Ou seja: o acesso à camisinha feminina é uma política nacional de saúde pública da qual todo cidadão brasileiro pode usufruir - exceto os que estão no BBB.

Calma, gente: a camisinha masculina também foi tabu um dia
Vou me abster de perguntas espinhosas à Rede Globo porque apontar seus erros não é o objetivo deste texto. Escrevo porque quero ver a camisinha feminina na bolsa de mais mulheres - e homens, por que não? Tive a oportunidade de apresentá-la a muitos adolescentes quando conduzia as rodas de conversa sobre Sexualidade, e eles sempre se assustavam diante daquela bolsa translúcida e opaca. Será que teria sido assim se no BBB da noite anterior alguém tivesse sido filmado pegando uma camisinha feminina da dispensa da casa mais vigiada do Brasil? 

Na disputa acirrada pra entrar no Big Brother Brasil a camisinha feminina ficou de fora. Nossa ilustre desconhecida deve continuar ausente do repertório de recursos que o brasileiro tem para transar sem correr riscos de infecção por DST ou gravidez não planejada. A menos que a Globo abra exceção e permita sua entrada tardia. Eu estou na torcida. Esse é meu voto, Bial.



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