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quarta-feira, 30 de setembro de 2015

"Quero o cheiro da tua orquídea em mim de novo"

por Letícia Bahia



Eu fiquei sem palavras quando me chegou essa mensagem de texto. Nós tínhamos passado um final de semana apaixonante no litoral, e no começo da semana a declaração que eu recebi por SMS terminou assim. Foi a primeira vez que a paixão de um homem por mim incluiu minha vagina. 


Todas nós, mulheres que trepam com homens, sabemos o quanto é raro encontrar um parceiro sexual que trate sua vagina como algo além de uma caverna para enfiar o pinto. Não estou me referindo ao fato de que muitos homens ignoram que há uma mulher atrás da vagina. Falo de uma relação ambígua, que mescla desejo com notas de misoginia. Falo de homens transbordantes de uma virilidade plástica, fabricada em série, mas que nunca pediram a uma mulher que abrisse as pernas para simplesmente contemplar sua vagina. O sexo com esses homens desperdiça o corpo, pois se faz apenas com genitais. Eles não sabem o que é esfregar a coxa em uma vagina, lambuzar-se com ela, respirar seu cheiro e, na hora de finalmente deixar-se engolir, cometer a loucura de ser um humano inteiro, entregue aos sentidos e ao outro, ainda que o outro seja um estranho. 


Nós ficamos bom pacas em forjar nos rapazes essa heterossexualidadezinha de merda. Sim, porque como se sabe, a heterossexualidade é algo atravessado pela cultura e, portanto, algo que se fabrica. Se você me vier com Darwin e o papo de que é preciso juntar óvulo e espermatozoide pra fazer um bebê, eu te devolvo com Simone de Beuvoir: "não se nasce mulher: torna-se". A cópula a que você se refere - cujo objetivo é tão somente a perpetuação da espécie - é só um pedacinho do sexo dos humanos. Descreve apenas nosso aspecto biológico. E é verdade que somos machos e fêmeas, como qualquer bicho, mas somos também algo que é expressão única do bicho homem, este ser cultural: nós somos também homem e mulher, menino e menina, rapaz e moça. Essa dicotomia representa a dimensão cultural do sexo biológico. Explico: nasce a fêmea humana, pinta-se o quarto de rosa; nasce o macho, o pai compra a camisetinha do time. Coisas de menina: boneca, casinha, afetividade, frescura, flor, estrela, delicadeza, coração... Menino: carrinho, futebol, ser estabanado, arma, carregar peso, falar palavrão... Com esse treino intensivo desde útero, não espanta que a gente tenha como resultado machos e fêmeas tão diferentes - mais diferentes do que em qualquer outra espécie. 


Nesse contexto, a transsexualidade chega como prova cabal de que o gênero - nome que se dá à dicotomia homem/mulher, e que tem mais do que duas variações para alguns teóricos - é cultura. É para estourar a champanha quando uma criatura que nasceu com pinto diz: "eu sou mulher". Você pode não gostar, pode ter nojo, pode querer assassiná-l@s (cuidado, dá cana), mas el@s existem e estão aí reafirmando a possibilidade de coexistência pacífica entre ter no meio das pernas um pênis - sexo biológico: macho - e ser fofoqueira, gostar de novela, mandar bem em humanas, ser sensível, usar vestido, e todo o sem fim de elementos que, em cada época, em cada cultura e em cada indivíduo nos fazem identificar alguém como pertencente ao gênero mulher. Não há contradição na transsexualidade, há apenas o rompimento da norma que associa, necessariamente, mulheres a fêmeas e homens a machos.

Mas onde é que a vaginofobia dos meninos entra nisso? Pois é. Faltou falar que somos todos, homens e mulheres, treinados para gostar do gênero oposto. Se você é do rolê feminista, você certamente já ouviu a expressão "heterossexualidade compulsória". Foi isso que sua professora reproduziu quando perguntou pra você, garoto, se aquela menina com quem você sempre andava de mão dada na escola era sua namoradinha. É esse o pano de fundo que está por trás da pergunta "como você reagiria se seu filho te contasse que é gay?". Falo da noção de que ser heterossexual é a norma e ser homossexual é um desvio. E, se a heterossexualidade é treinada, se é da cultura, se se refere infinitamente mais às relações entre homens e mulheres do que entre machos e fêmeas, então é importante que a gente se pergunte:  como é essa heterossexualidade para qual estamos treinando os rapazes? Entre muitas outras coisas nocivas, ela é vaginofóbica.

Não haveria como ser diferente: se o mundo é machista desde que o mundo é mundo, e se o mundo entende que vagina é coisa de mulher (mas você já entendeu que é coisa de fêmea, certo?), é claro que um comportamento afetivo-sexual tido como normal não vai ficar enaltecendo a vagina. 

Nós também somos treinadas para não gostar muito da nossa vagina. As mulheres não se tocam, não se olham no espelho; a masturbação feminina é um tabu enorme; a indústria da ~beleza~ vende sabonete para disfarçar o cheiro da vagina; temos vergonha de falar da nossa menstruação; depilação na virilha (virilha, no caso, é eufemismo) é praticamente obrigação. Sim, nós também desempenhamos nosso papel nesse mundo que não gosta de vaginas. 

Agora repare como as vaginas aparecem nos filmes que os meninos assistem do RedTube. Veja como eles se relacionam com elas: é pôr pra dentro e próxima! Até conhecer uma vagina de verdade, a maioria dos moços só terá visto vagina depiladas, escolhidas de acordo com critérios da misógina indústria pornô e a serviço de um prazer masculino que, se envolve vagina, é com penetração no modelo britadeira. Não é de se espantar que eu tenha me encantado pelo moço que queria se impregnar com o cheiro da minha orquídea!

E como a gente muda isso? Como a gente faz pra desconstruir esse nojinho misógino que tantas vezes aparece na cama de um casal hetero? Gosto de pensar o Feminismo como um movimento que inclua homens, e nesse sentido acho fundamental que você aí, colega que tem medo de vagina, vá procurar na sua história como é que foi acontecer de você aprender a ter nojo daquilo que supostamente te atrai. Mas o protagonismo da luta é nosso, e nós não vamos esperar sentadas. Minha proposta é que a gente assuma nossas vaginas com todo o amor que lhes cabe. Proponho que a gente dê um vibrador pra todas as amigas que fizerem aniversário, que a gente crie mais e mais fóruns pra discutir menstruação. Proponho um relacionamento sério, honesto e amoroso com nossas próprias vaginas. É preciso conhecê-la profundamente, quiçá fotografá-la, filmá-la. Você já viu sua vagina? Desejo que a gente repense a depilação, esse procedimento tão doloroso, e procure se acostumar com o fato de que vaginas têm cheiro de vagina. Torço pra que a gente consiga olhar com desconfiança para esses amores que não se estendem a esse pedacinho tão essencial de nossos corpos. 

Não é nada fácil - eu sei, e sei porque vivo. Mas não há outro caminho. Se não fizermos a nossa parte, pode até ser que a reflexão dos meninos funcione e eles decidam que - plin! - vão amar nossas vaginas como elas são. Mas se assim acontecer, nós estaremos mais uma vez nos subordinando a uma construção dos homens. Não é o que nós queremos, é? É preciso que a gente se enxergue com olhos de mulher, que a gente realize a revolução de descobrir a semelhança maravilhosa que existe entre uma orquídea e uma vagina.          






quinta-feira, 7 de maio de 2015

Eu já tive uma DST

por Letícia Bahia


Eu já tive HPV. Também já tive amigdalite, catapora e gripe. Mas destas eu não tive vergonha. 

É compreensível a gente querer manter na esfera privada doenças graves como câncer ou Alzheimer. Mas não era o caso do HPV. O tratamento foi rápido, indolor e eficaz. Depois foi só refazer o Papa Nicolau - exame que detecta o vírus - a cada 6 meses pra confirmar que estava tudo bem, e estava. Mas então, por que a vergonha?

Penso que a resposta esteja escondida no "S" da sigla DST. Afinal, vergonha e sexo andam tão juntos que muita gente se refere ao pênis e à proibidíssima vagina como "as vergonhas". Dentro dessa lógica, meu resultado positivo para HPV era a prova irrefutável do pecado: eu, mulher e solteira, havia me engajado em conjunção carnal. Tal qual os progenitores de cada um de nós, eu havia transado. Mas, diferente dos meus pais, eu não tinha o perdão prévio concedido pela instituição do casamento. Diferente de um homem, eu não tinha a indulgência concedida aos homens por, bem, serem homens. Mas poderia ser pior: eu poderia ser homossexual, e aí meu pecado se enquadraria como manifestação da praga gay.

A praga gay, também conhecida como vírus da imunodeficiência humana - ou simplesmente HIV - apresentou-se ao mundo no início da década de 80. À época, verificou-se uma alta prevalência do vírus na população homossexual masculina, razão pela qual a Aids recebeu a alcunha de "peste gay". É ou não é um encanto a espécie humana?

Então ficou decidido assim: se você tem alguma DST é porque aprontou. E 30 anos depois de reportados os primeiros casos de Aids, nós ainda não desfizemos o combinado.

Para além dos efeitos segregatórios que decorrerem desse preconceito demodé - já não é hora de deixar cada um decidir por si com quem trepar? - precisamos reconhecer seus efeitos nefastos no campo da saúde, porque se existem doenças sobre as quais temos vergonha de falar, tudo que diz respeito a tratamentos e - muito importante - prevenção fica encoberto pela névoa dos tabus. 

É comum, por exemplo, encontrar quem acredite que relacionamentos estáveis estão isentos do risco de infecção. "Eu confio nele/nela", dizem os apaixonados. Para além do fato de que estamos todos sujeitos a deslizes, é preciso que saibamos que o sexo sem proteção é uma entre várias maneiras de se contrair uma DST. É a mais comum, é verdade, mas você pode contrair herpes bebendo no copo de um amigo, e depois levá-la para o genital do seu parceiro via sexo oral. Você pode contrair Aids em um acidente de trânsito em que as vítimas tenham fraturas expostas e haja troca sanguínea. DST não é sinônimo de traição, e abrir mão da camisinha, lamento, sempre envolve riscos. 

Seguindo: como será que se sentem as garotas diante da camisinha? Eu já trabalhei com milhares, e a reação quando eu abria o pacotinho quadrado era sempre de constrangimento. Eu insistia para que elas pegassem, tocassem, sentissem a camisinha - você precisa estar à vontade com aquilo para saber o que fazer na hora agá - mas garota que se preze fica com vergonha quando o assunto é sexo. Melhor manter distância da camisinha, o que é que a turma vai pensar? Não por acaso, a popularidade do preservativo feminino - que eu, pessoalmente, recomendo - é um fiasco. Afinal, mulher e sexo são duas coisas que só podem andar juntas dentro do casamento, e pra quê usar camisinha dentro do casamento? 

Com os meninos o problema oposto gera o mesmo resultado: a necessidade de afirmar a masculinidade faz com que o garoto que recuse uma transa por falta de camisinha - um comportamento que deveria ser aplaudido - seja punido pelos colegas com risadas, acusações de brocha, frouxo e - o terror maior de um jovem em uma sociedade homofóbica - viado.

Esses e outros preconceitos têm uma característica importante em comum: eles situam as DSTs sempre lá longe. Repare que nada se afere do caráter de quem tem diabetes, dengue, Parkinson ou câncer. Eventualmente pode-se alegar que o sujeito colheu o que plantou: "sempre comeu mal e fumou a vida toda, uma hora chega a fatura". Mas os portadores de DSTs são maus. Estão doentes porque pularam a cerca, porque treparam demais, porque treparam com quem não conheciam. Estão doentes porque são umas putas, uns viados, uns drogados. Tivessem se comportado...    

Daí decorre o mito da imunidade imaginária, a certeza ilusória de que DSTs acometem outro tipo de gente, nunca o meu tipo. E se acontece, é preciso esconder para evitar o julgamento do mundo. E enquanto não acontece nos deleitamos na miragem de uma segurança fundamentada em moralismo e preconceito. O vírus da Aids, então, segue se espalhando, alheio às classificações que inventamos para reafirmar o quanto somos legais e honestos e comportados e generosos. É que as doenças são tão cegas quanto deveria ser a Justiça: ignoram seu caráter, seu sexo, sua cor. A única coisa que importa é se você deixou uma porta aberta. Mas como a gente acredita que nós e nossos parceiros somos bacanas o suficiente pra que as DSTs nos poupem, nos damos ao luxo de trepar sem camisinha. O resultado? Tendência de crescimento do HIV na população jovem masculina, apesar de pesquisas mostrarem que o problema não é falta de informação.

As soluções já estão desenhadas, mas como de más intenções Brasília está cheia, o prognóstico não é dos melhores. Os parâmetros curriculares estipulados pelo MEC posicionam a orientação sexual como tema transversal obrigatório, ou seja, ele deve ser trabalhado nas escolas por diversas disciplinas. É claro que a prática está longe de ser essa, e a vontade política de fazer acontecer é escassa. A exemplo disso, o museu Catavento, gerido pelo governo de Geraldo Alckmin, fechou no início deste ano a instalação em que eu conduzi milhares de oficinas com jovens sobre prevenção de gravidez e DST. Em 2011, Dilma cedeu às pressões das bancadas conservadoras e vetou a distribuição nas escolas do kit anti-homofobia. Se a presidenta abandonou a causa então, não há razão para crer que agora, com a corda no pescoço, levará adiante a promessa de campanha de criminalizar a homofobia. Estratégico no combate às DSTs, o debate sobre a homossexualidade não deverá contar aliados no poder público tão cedo. Muito pelo contrário: a bancada evangélica levanta seu estandarte cada vez mais alto, tendo como porta-bandeira o deputado federal Marco Feliciano. Diante disso tudo, caríssimos, confesso que está um pouco difícil manter o otimismo. Tudo que eu posso fazer é dizer abertamente que eu já tive uma DST, que contrair doenças faz parte da vida e que falar sobre elas é parte da cura. A gente é tudo gente, porra.

Deixo vocês com um vídeo de uma turma que está mais esperançosa do que eu:


segunda-feira, 4 de maio de 2015

Cinefeminismo

por Letícia Bahia



Essa lista é pra a gente aprender. Cada novo filme ou documentário que eu assistir - e gostar! - vem pra cá com uma pequena resenha, trailer e, quando possível, link para o longa na íntegra. Isso quer dizer que essa postagem nunca vai parar de crescer. A lista também pode incluir filmes sobre a luta LGBT, sexualidade e outros temas que dialoguem com o feminismo.

Então, se você assistiu algum filme daqueles imperdíveis - ênfase para documentários, porque o objetivo aqui é aprender - me manda um email, uma mensagem no Face do Lagarta ou sinal de fumaça. E se você já viu algum dos que está na lista, conta aí nos comentários o que achou!

A lista vai ficar mais legal com a ajuda de vocês.

Classificação: bom (!), excelente (!!), tá de sacanagem que você não viu ainda (!!!)
Em ordem alfabética:

After Tiller (2013) !!
Em 2009, George Tiller foi assassinado a tiros dentro de sua igreja. O doutor Tiller era um dos 5 médicos dos EUA a performar abortos depois do terceiro trimestre de gestação. O documentário acompanha a rotina dos 4 profissionais que seguem realizando esse tipo de procedimento. Mas não espere respostas: o que você vai encontrar aqui são histórias duras, pessoas mudando de opiniões, dilemas morais. Um aprofundamento fundamental para quem ainda acredita que a questão do aborto se resume a ser contra ou a favor.


Free the Nipple (2014) !
Lina Esco dirige, estrela e é co-roteirista deste longa, que conta a história de uma ativista pelos direitos das mulheres. Realidade e ficção se confundem: Lina também é ativista, e as dificuldades que enfrentou nas filmagens por colocar mulheres com o torso nu nas ruas de Nova Iorque levaram-na a lançar Free The Nipple como uma campanha, meses antes de finalizar o filme.

torrent do filme para download

The Invisible War (2011) !!
No exército dos EUA, uma mulher tem mais chances de ser sexualmente abusada por um colega do que de ser atingida por fogo inimigo. Indicado ao Oscar de melhor documentário, The Invisible War joga um pouco de luz na tragédia dessas mulheres. Das sequelas às tentativas de acobertamento, esteja preparado para um soco no estômago.

filme na íntegra (legendas em português)

Meninas (2005) !!
A diretora Sandra Werneck acompanhou a gravidez de 3 adolescentes, a mais nova com apenas 13 anos. O documentário é de uma sensibilidade única. Aqui quem conta as histórias são as próprias garotas e suas famílias. A narrativa da diretora é discreta, permitindo ao espectador formular livremente suas opiniões. Mas depois de conhecer Luana, Evelin e Edilene, talvez você prefira calar. 

trailer

Miss Representation (2011) !

A representação da mulher na mídia americana é o tema deste documentário, que intercala trechos de propagandas, filmes e programas de TV com depoimentos de adolescentes e personalidades como a ex-secretária de estado Condoleezza Rice. Dados desconcertantes mostram que a realidade da mulher nos EUA está sofrendo forte influência dos meios de comunicação. O cenário desalentador inclui aumento nos índices de anorexia e depressão, mais nudez feminina na televisão e um diminuto número de mulheres em cargos de liderança.

trailer (em inglês)
filme na íntegra (legendas em português)

Orgasm Inc (2009) !!!
Cirurgias plásticas na vagina, procedimentos invasivos na coluna, remédios, muitos remédios. Você não vai acreditar na quantidade de procedimentos médicos que vem sendo desenvolvidos pela indústria farmacêutica depois que a própria indústria farmacêutica conseguiu autorização do governo americano para tratar mulheres que não gozam como doentes. Com um bom humor surpreendente, Liz Canner passou 9 anos entrevistando especialistas e mulheres que testaram os mais bizarros procedimentos. O resultado é emocionante e certamente vai fazer você reexaminar sua própria relação com sexo e com o seu corpo.

O filme não está disponível gratuitamente, mas está no catálogo do Netflix.

The Times of Harvey Milk (1984) !!!
O longa arrebatou o Oscar de melhor documentário, e anos depois serviu de base para o roteiro de Milk, estrelado por Sean Penn. O ativista Harvey Milk foi o primeiro gay assumido a se eleger nos EUA para um cargo público, em uma São Franciso efervescente, que graças a Milk sediou a primeira parada gay do mundo. Junto com o prefeito da cidade, Harvey foi assassinado dentro da prefeitura por um inimigo político de ambos. Incrivelmente atual, este filme vai fazer você querer levantar do sofá pra mudar o mundo. 


Tomboy  (2011) !!!
Uma história doce e amarga sobre como aprendemos e ensinamos as performances de gênero - e sobre como isso rouba liberdades. Contar mais do que isso seria estragar uma das primeiras surpresas desse longa sublime.

trailer (legendado)
O filme não está disponível gratuitamente, mas está no catálogo do Netflix.

Vessel (2014) !!
Foi trabalhando como ativista do Greenpeace que a médica holandesa Rebecca Gomperts tomou conhecimento das mulheres que morriam mundo afora por complicações decorrentes de abortos inseguros, realizados das maneiras mais insalubres imagináveis, e normalmente em mulheres negras e pobres. Vessel acompanha a trajetória de sua ONG, que realizava abortos seguros em alto mar, e as estratégias de Rebecca para empoderar mulheres em todo o mundo. Nesse documentário você vai descobrir como Rebecca tornou o aborto seguro uma realidade possível para qualquer mulher, em qualquer lugar.


Violência Obstétrica - A Voz das Brasileiras (2012) !
Uma compilação de relatos de mulheres que não tiveram escolha sobre como, onde e quando dariam à luz. De falta de informação a episiotomias não autorizadas, o documentário reúne histórias do país que lidera o ranking mundial de cesarianas. É preciso ter estômago pra assistir.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Guardem o Rambo na cristaleira

por Letícia Bahia



A masculinidade é uma fina camada de tinta que esconde as cicatrizes de um vaso remendado. Como são pequenos os homens quando bradam sua virilidade no trânsito ou numa partida de futebol! Toda a sua capacidade de destruir a um só golpe o mais poderoso exército não resiste à tesoura de Dalila. Uma escova de dentes cor-de-rosa, uma perna cabeluda encostando em outra no ônibus das seis da tarde, um beijo homossexual na novela: como é fácil ameaçar um castelo, quando o castelo é de cartas. Ah, como é frágil a masculinidade, essa palavra tão restrita em azul. O óbvio que busca esconder só aos tolos não se escancara: estamos todos com medo. Ah, o impossível fardo de esconder a humanidade, possível apenas para quem nunca conheceu quem tivesse levado porrada... 



Parecem crianças, os homens, em seu desespero por preservar o cristal que eles precisam fingir ser de aço. Engalfinham-se até o sangue; engrossam a voz até dilacerarem as glotes; enfrentam uns aos outros empinando o peito como o animal que não pode contar com a astúcia. Esperneiam no shopping center pela bola que a mamãe não comprou. O que será dos homens sem sua imprescindível masculinidade? Alguém os quererá?



Toda vez que um novo paciente chega no consultório buscando alívio para suas angústias, procuro pelas fraturas no vaso remendado. Detesto a perfeição. Ainda que falsa, diante dela me sinto sozinha com minhas mazelas, a única mortal do mundo. Mas não, não arranco as camadas de tinta dos outros. Não são minhas as defesas, tampouco as dores. Alguns não aguentam erguer a pontinha que quer descascar e pouco a pouco suportar, primeiro o horror, depois o alívio, de ver – e mostrar – suas fraturas como são. Não há nada mais acalentador do que mostrar-se quebrado e perceber que o outro não vai embora. Mas alguns não suportam o risco. Eliane Brum me explicou que esses eu preciso respeitar, porque sofrem de delicadeza.


Eu poderia ter pena destes meninos tão quebradiços em sua luta de morte por não serem aquilo que já são. Eu poderia, se eles não escolhessem (adultos sempre escolhem, tudo e o tempo todo) o único caminho inadmissível. Eu poderia e posso apiedar-me dos arrogantes, dos que fingem indiferença – eu os vejo quando esticam o canto dos olhos procurando algum sinal do que pensamos deles. Eu os vejo, e sorrio condescendentemente. Também não me é fácil ser frágil, e eu sei que há gente, gente de todos os gêneros, que tem só uma pequenina caixa de ferramentas para lidar como esse fardo hercúleo que é ser humano, destrutível e frágil. Eu posso ter pena desses.

Mas não, eu não posso ter pena dos homens que mantém o mito absurdo da masculinidade às custas de uma mulher. Estou me referindo aos homens que espancam e estupram mulheres nas ruas, mas também a homens muito mais cotidianos. Falo daqueles que transam com a esposa fingindo ignorar que ela não está com vontade; dos que se aproveitam da multidão no transporte público. Vocês, que enchem a boca para chamar uma mulher de vaca, vadia, vagabunda, ou do sem fim de palavras que condena nossas escolhas sexuais. Eu sei que na verdade vocês estão sofrendo a terrível dor da rejeição, mas se é ela que os torna humanos, recusá-la é o que os iguala às bestas.

O espelho mágico não pode revelar a certos homens a verdade que lá no fundo eles já conhecem. Aos que não têm força para admitir sua própria fragilidade só resta odiá-la, odiar a fragilidade e tudo que é frágil. E as mulheres, porque humanas, são frágeis. Nasce assim a misoginia, filha do medo, mãe do estupro.

Para estes homens que nunca pedem perdão não pode haver perdão. Seguirão vivendo a farsa de sua masculinidade de vidro, mas saberão que eu os enxergo. Nada posso contra esse inimigo desnecessário, mas não poder não é problema para quem se sabe frágil. Meu lugar é com os loucos, os amputados, as putas como eu, os doentes, com os que transpiram o odor forte da humanidade. Algumas vezes nós temos que parar nossos projetos importantes para construir defesas, porque vocês se incomodam só por sermos o que somos. Nós nos defenderemos dos seus porretes com armas de um poder que vocês desconhecem. E então seguiremos correndo com os lobos, ainda mais loucas, mais livres, mais mulheres do que nunca, até que vocês deixem de existir.


segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

"Incomodada ficava sua avó"

por Letícia Bahia


A frase é boa, mas não é minha. "Incômodo" era a palavra que as mulheres de mil novecentos e bolinha usavam para se referir à menstruação, e a marca de absorventes internos Tampax fez o trocadilho deste título em uma propaganda. Hoje ninguém mais usa essa expressão, mas nem por isso a referência direta à menstruação deixou de ser um incômodo. A fobia é tanta que - pode reparar - nenhum comercial de absorvente usa essa palavra.

Esse distanciamento se reflete na linguagem, mas é na relação da mulher cissexual consigo que ele se torna abismal. Quantos mililitros de sangue seu corpo elimina a cada mês? Como é o cheiro da sua menstruação? É da mesma cor que o sangue que sai de um corte? Tem a mesma textura? É bem provável que estas perguntas soem estranhas, quiçá nojentas. Talvez a própria palavra menstruação já cause incômodo em algumas pessoas. Melhor dizer que estamos "naqueles dias", assim não provocamos nenhum constrangimento.

É assim quando o feminino se expõe: mostre uma vagina ou fale sobre a vagina e o mundo se escandaliza. Ela precisa ser escondida, sob o risco de ameaçar o monopólio do pênis como símbolo de potência. Lembro-me da minha menarca e da vergonha que ela me trouxe. Eu estava, como se diz por aí, "virando mulher", e isso me trazia... vergonha. Telefonei para casa e quem atendeu foi meu pai. Ele me pressionou para que eu dissesse por que estava estranha e eu me vi obrigada a cometer a mais alta transgressão: revelar meu ser mulher. 

Não importa: aqui vamos falar de vagina sim, e vamos falar sobre pêlos, sobre secreções, sobre histórias de parto humanizado. E hoje falaremos sobre menstruação. 

A primeira coisa a ser dita é que não há nenhuma razão para ter nojo da menstruação. Nojo é um sentimento que nos impele a nos afastar de algo, o que pode ser muito útil no caso de fezes, ratos, ou outras coisas que possam colocar nossa saúde em risco. A menstruação, no entanto, sinaliza saúde. Não se trata de guardar o sangue para cultuar nele o feminino sagrado, mas de compreender que não há porque temê-lo. Pelo contrário: o sangue menstrual contém informações preciosas sobre o funcionamento do corpo da mulher, podendo sinalizar DSTs, anemias e outros problemas. Dar atenção à menstruação é algo tão saudável quanto acompanhar a pressão sanguínea. 

Os absorventes que encontramos nas farmácias ou supermercados - aqueles que jamais mencionam a menstruação - vão na contramão desta intimidade com o próprio corpo. Com pequenas variações, as repetitivas propagandas vendem a ideia de que com o produto estaremos "mais limpas". Não chega a ser um milagre do calibre de converter água em vinho, mas a menstruação virou sujeira e nós nem percebemos. Mas não sejamos injustos: a Publicidade está apenas reproduzindo - e faturando com - uma ideia mais velha do que Eva e Adão. Não saberia dizer quem a inventou, mas há muitos anos uma turma de homens escreveu um livro importante sobre isso. O volume emplacou de tal maneira que hoje se acha gente em qualquer canto contando a estória da moça que comeu o que não devia, induziu seu companheiro, coitado!, a comer também, e deixou seu pai  furioso. É por causa desse erro, diz o livro, que a mulher sente dor ao parir. Mais pra frente o livro adverte: enquanto houver sangue fluindo de dentro da mulher, ela ficará impura e ninguém deverá tocá-la. Pra não restar sombra de dúvida sobre o caráter das regras, os autores repetem à exaustão que também se torna impuro tudo e todos que tocarem a mulher durante o período menstrual. 

Então ficou decidido assim: a menstruação é suja e fedida. A mulher maculou toda a humanidade com seu erro (mais pra frente o tal livro fala sobre um homem que teria vindo pra redimir a humanidade, mas isso é outra estória), e todo mês passará uma semana isolada em sua impureza. 

Quando, muito anos depois da publicação do referido livro, outra turma de meninos descobriu que a menstruação é tão somente um pedaço do ciclo que prepara a mulher para uma eventual gravidez, o estrago já estava feito. Mas a indústria de absorventes, generosa que só ela, vem fazendo o possível pra aliviar a barra das mulheres. Menção honrosa para o sabonete íntimo, porque não está certo vagina ter cheiro de vagina.

Chega de fábulas. Vejamos o que acontece na vida real quando compramos um absorvente e o colocamos dentro ou junto da nossa - vamos repetir? - vagina. 

Quando o sangue menstrual entra em contato com o ar, inicia-se uma série de reações que você não quer que aconteçam ali, do lado de fora da sua vagina. É a festa da uva das bactérias: matéria orgânica rica em nutrientes e o seu calorzinho gostoso. É por isso que os absorventes contém perfumes: para neutralizar o odor que eles mesmos produzem. Se a mulher tiver feito a lição de casa direitinho e não houver pêlos na região, a exposição será maior, já que o contato será ainda mais direto. Pois é, os pêlos que a gente aprende desde o útero a odiar são a nossa calcinha natural, mas esse assunto merece um texto só pra ele.

Sobre o absorvente interno: a vagina é um local úmido, e permitir que o fluxo sanguíneo escorra livremente mantém essa condição. Os absorventes internos não querem saber de conversa: sugam tudo que é líquido, inclusive a secreção que mantém úmido o canal vaginal.

Além de tudo isso, os absorventes comuns produzem uma quantidade gigantesca de lixo ao longo da vida da mulher. Mas bem, who cares?, não é mesmo?

Dessa discussão sobre saúde - física e emocional - da mulher, nasceu o coletor menstrual. Esse copinho de silicone medicinal (hipoalergênico e antibacteriano) fica acomodado no canal vaginal mais ou menos como um absorvente  interno. Custa em torno de sessenta reais e dura de cinco a dez anos - o que significa dizer que sua popularidade pode custar muito dinheiro às fábricas de absorventes.

Quando a mulher retira o copinho, lá está seu sangue. É possível conhecer sua textura, seu cheiro - de sangue, pasmem. Linhas horizontais ajudam a medir o volume do líquido, o que pode inclusive ajudar a diagnosticar uma anemia. É possível descartar o sangue no chuveiro ou na privada, mas vamos nos lembrar de que aquilo ali é matéria orgânica. Não é sujeira e não precisa de tratamento para retornar à natureza, por isso algumas mulheres fertilizam suas plantas com seu sangue, causando verdadeiro horror nos vaginofóbicos.

A menstruação é um dos infinitos exemplos de como a mulher é destituída de si mesma em função de sua utilidade. Nesta lógica puramente mercadológica, inventa-se o nojo, demoniza-se a menstruação e fatura-se com a venda de soluções. Não há nada de errado em desenvolver um produto bacana e lucrar com ele, mas fazer isso às custas da autoestima e, em alguns casos, da saúde  da mulher é... corriqueiro. 

Passem pra cá nossos corpos: nós é que vamos decidi-los.






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