terça-feira, 12 de julho de 2016

Prostituição, Julia Roberts e o amor romântico

Ela era magra, linda, sonhadora, desbocada e, como se não bastasse, ruiva. O príncipe veio não a cavalo, mas em um carrão, e comportou-se como se estivesse no mais tradicional dos contos de fadas, oferecendo-lhe o combo amor e dinheiro. Em troca - pra não dizerem que a relação é totalmente assimétrica - aprendeu um pouquinho sobre a candura que a vida de empresário durão não lhe permitia. Qual a mulher que um dia não quis ser puta, se ser puta era ser Julia Roberts em Uma Linda Mulher? Ocorre que, fora dos filmes que (ainda?) reproduzem os contos de fada, a realidade da prostituição é outra.
De acordo com o Relatório Mundial sobre a Exploração Sexual - A prostituição no coração do crime organizado, da Fundação Scelles, 42 milhões de pessoas (ou quase uma Espanha) se prostituem no mundo. A pesquisa que deu origem ao documento foi realizada em 24 países e talvez seja a maior já realizada sobre o tema. Ela aponta que, dessas 42 milhões de pessoas, a maioria (56%) está na Ásia, 75% são mulheres entre 13 e 25 anos, 2 milhões são crianças e 10% não está vinculada a cafetões ou cafetinas.
É provável que nenhuma delas seja ruiva, mas se a realidade da prostituição está longe do conto de fadas de Julia Roberts, talvez um olhar mais atento possa nos mostrar que entre as 42 milhões de pessoas que vendem sexo há muito mais diversidade do que o nosso olhar piedoso quer enxergar.



O estigma da prostituição faz o que qualquer estigma faz: cola na testa do indivíduo um rótulo depreciativo e totalizador. A etiqueta de prostituta passa a definir a pessoa. Tudo o que ela é e faz deriva desse rótulo. Naturalmente, populações estigmatizadas (portadores de necessidades especiais, negros, índios, homossexuais, prostitutas e outros) não participam da construção do significado dos rótulos que lhe são atribuídos.
Não é o homossexual, mas o autor da novela da Globo, quem define o que é ser gay. Sobre populações indígenas, quem recheia nosso imaginário talvez seja mais o cinema americano do que o nosso próprio, mas os índios brasileiros é que não são. Tampouco são as prostitutas que determinam o que significa, em termos de imaginário social e de símbolos, o que é ser puta (elas jamais decidiriam, por exemplo, que ser filho delas seria ofensa).
Se quem define o rótulo é quem está fora dele, não espanta a enxurrada de documentários e filmes com pinta de cinema europeu que mostram a realidade das prostitutas no Nordeste, a realidade das escravas sexuais na Mongólia, a realidade das mulheres cafetinadas por empresários nos megaeventos esportivos.
A princípio pode não parecer uma descrição ofensiva - certamente quem mostra essas realidades não quer ofender -, mas o ponto comum entre essas histórias é a figura da mulher esmagada pelo patriarcado e pela pobreza. Curiosamente, o lugar da mulher no mundo patriarcal é exatamente o daquela que, vítima impotente, precisa de um herói que a resgate. Parece ter ficado impossível falar sobre prostituição sem mostrá-la como necessariamente uma tragédia. Mas por que insistir tanto nesse recorte? Se até Glória Perez já emplacou novela da Globo sobre o tráfico de mulheres na Turquia, quem é que nós ainda estamos tentando convencer?
Não falta ninguém, falta só o último apagar a luz. Mas a sala ainda está abarrotada de gente que nunca conheceu uma prostituta esbanjando opinião sobre como salvá-las. É curioso observar o quanto nos sensibilizamos com as tragédias contadas peloFantástico, pelo Profissão Repórter ou por aquele documentário brilhante premiado em Cannes, sem nunca nos dar conta de que, invariavelmente, o que se vê e se ouve nesses contextos nunca é propriamente a verdade sobre a prostituição, mas sempre o olhar de alguém sobre a prostituição - alguém que, provavelmente, é branco, rico e homem.
Não se trata de desmentir as tragédias da profissão mais antiga do mundo, mas de somar outros relatos. Pouco se fala, por exemplo, da contribuição das prostitutas brasileiras para a construção de políticas de combate à epidemia de HIV/AIDS nos anos 90. Tendo sido vítima preferencial do estigma associado ao vírus, as prostitutas (e também os homossexuais) foram peça fundamental na construção de uma política de saúde pública que virou referência mundial.
Também não é permitido comparar a prostituição a outras profissões que, igualmente, a maioria de nós não deseja para seus filhos e filhas. Não, nada é mais degradante do que ela. Mas se a prostituição oferece alto risco de infecção por DSTs, um motoboy em São Paulo está a mercê do trânsito que mata 7 motociclistas a cada dia. Se elas estão no ofício por falta de opção, eu pergunto qual é a faxineira que escolhe limpar na privada o rastro das fezes alheias. Infelizmente, pouca gente admite esse tipo de comparação. Ela é a pior e ponto, não insista no debate. Onde foi que pegamos a curva errada e discutir a prostituição em toda a sua complexidade se tornou sinônimo de dizer que se prostituir é bacana?
Há de ser culpa da Julia Roberts, essa princesa eterna, repetitiva e enfadonha que a gente tem tanta dificuldade de matar. Em todas as suas versões ela nos lembra: sexo e amor tem que andar sempre de mãos dadas. Não se deve separá-los, não é coisa de mulher que se preze. Nós passamos milênios sendo treinadas para vincular obrigatoriamente amor e sexo, luz de velas e sexo, comida italiana e sexo. Essa é a lógica que estrutura o amor romântico patriarcal, o amor nos moldes das religiões cristãs - elas, que tanto batalham pela nossa coroa de rainhas do lar. O sexo, dentro desse contexto, é o maior valor da mulher, e por isso ela deve entregá-lo a poucos. Se for a um só, tanto melhor. Se for a nenhum, aí a gente beatifica, como fizemos com aquela moça que, dizem, pariu sem trepar.
A ideia de que o sexo deve ser concedido com parcimônia é irmã da ideia de que o sexo suja a mulher. Nós sabemos que existe uma relação direta entre o valor da mulher e seu número de parceiros e estripulias sexuais. É só por isso que faz sentido para quem é machista chamar a presidenta de vadia: porque aproximar uma mulher do sexo é rebaixá-la. Em uma sociedade patriarcal, o sexo só é bem visto se for presente especial concedido a um homem. Sexo é desonroso se for feito entre dois homens, entre duas mulheres, entre muita gente, com muita gente, e também se puder ser vendido, principalmente se quem vende é uma mulher. Em uma sociedade capitalista é preciso ser dono de algo para vender esse algo, e a mulher ser dona do próprio sexo é, ao lado do aborto, a mais alta transgressão da lógica patriarcal.É claro que precisamos problematizar a proporção imensa de mulheres que fazem uso do corpo em detrimento das ideias, mas é igualmente importante refletir sobre porque a sedução feminina se tornou arma indigna enquanto o mesmo não aconteceu com a força, atributo maior da masculinidade.
Jogar a prostituição no saco do proibicionismo decidindo que ela é essencialmente uma coisa ruim, um mau a ser extirpado, é triste e simplório. Nós já conseguimos mudar esse paradigma em relação às drogas. Antes elas eram más, hoje elas podem ser más, a depender da relação que se estabelece com elas. Hoje entendemos que por trás do abuso de drogas estão fatores como a pobreza, o desemprego, a história familiar, a depressão ou mesmo o desejo.
Graças a essa mudança de paradigma - as drogas não são más, a relação que se estabelece com elas é que pode ser boa ou má - temos conseguido caminhar, muito lentamente, para longe da guerra às drogas e construir contextos de acolhimento para quem precisa.
Se queremos seguir o exemplo de países que trocaram a proibição das drogas por modelos regulatórios, por que essas mesmas pessoas se recusam a ver com bons olhos a regulação da prostituição? Por que se referem ao PL Gabriela Leite como o PL da cafetinagem? Que se faça críticas, vá lá. Mas jogar o único projeto decente no lixo em nome do proibicionismo é um equívoco sem tamanho.
Já basta de tratar as putas com condescendência, de falar com elas do alto da nossa generosidade branca. Precisamos parar de dizer a elas o que é melhor pra elas. Não é admissível dizer que uma profissão exercida por 42 milhões de pessoas, com toda a diversidade que cabe dentro desse número enorme, deve ter como única resposta a extinção. Que possamos encontrar no debate sobre prostituição a diversidade que o Feminismo tanto valoriza. Que possamos ouvir Amara Moira, Monique Prada e tantas outras mulheres que têm falado sobre o tema com propriedade e conhecimento de causa.
Sobretudo, que a gente não seja e não veja umas nas outras nem a donzela na torre nem a bruxa, nem Eva nem Lilith, porque nós somos muito mais complexas do que qualquer fábula do patriarcado jamais dará conta de descrever.

* texto originalmente publicado aqui
Reflexões de uma lagarta no Facebook

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Mas e o feto?

[Se você precisa de um aborto, esta organização pode te ajudar]

"Mas, gente, e o feto?". Atreva-se a fazer essa pergunta em um papo com feministas! Mas atenção: recomendo antes verificar se as saídas de emergência estão desobstruídas, porque a reação vai ser braba. Se for em grupo de Facebook, então, aí é que a coisa engrossa mesmo. É que quando você pergunta "mas e o feto?", boa parte das feministas escuta outra coisa. Elas automaticamente supõem que você é contrário à descriminalização do aborto - uma posição inadmissível dentro do movimento. O curioso é que as condições básicas para que aconteça um aborto são as seguintes: 1) uma mulher; 2) um feto. Mas o Feminismo, salvo exceções, não topa discutir o item 2. Será medo? Será que temos medo de encontrar em um fundo de gaveta algum sentimento, algum pesar pela vida do feto? Será que estamos tentando tapar a vozinha que sopra "mas ele também tem direitos..."?



Não consigo compreender a recusa em falar sobre o feto como outra coisa que não uma defesa contra as respostas que o Feminismo não quer enxergar. Nós já estamos cansadas de ler, ouvir histórias e assistir a documentários sobre as mulheres que morrem por conta de abortos inseguros. E devemos continuar repetindo essas histórias, porque essas mulheres existem. Mas, companheiras, o feto também existe. Existe enquanto realidade concreta e existe na dimensão simbólica, seja na recusa das feministas (recusar é atestar a existência) ou na empatia infinita daqueles que sofrem pelos fetos abortados. A pergunta está na mesa, irmãs. É nosso desafio aceitá-la. É o único caminho possível para comprovar - ou seria verificar? - que a legalização do aborto é a única solução humana. E se a gente refletir sobre o feto e chegar à conclusão de que seus direitos devem prevalecer sobre os da gestante, que seja! Esquivar-se de um debate por medo das respostas no caminho é desonesto. Simplesmente coisa que não se faz. Dito isso, sigam-me os bons!



A primeira coisa a ser dita é que, ao contrário do que se costuma crer, a discussão sobre aborto não é uma discussão sobre o direito à vida. Nós não temos problemas com a morte de células - como os óvulos e espermatozoides, por exemplo - e de plantas - dos eucaliptos de que fazemos portas e papeis até a salada. A maioria de nós não tem problema sequer com a morte de bois, galinhas, porcos, peixes e outros animais que saboreamos diariamente. Sim, o feto é uma vida. Ponto pacifico. Mas não, o problema do aborto não é matar uma vida. Então qual é o problema? Apertem os cintos que vamos começar a complicar a parada.



A turma que não curte abortos gosta de falar em abortos como "o assassinato de um bebê inocente". É assim, de fato, que elas percebem um aborto. E, gente, nós também achamos que o homicídio de um bebê é crime dos mais tenebrosos, confere? Todo mundo no mesmo pé? Avante, feministas, que chegamos ao ponto culminante: o que precisamos buscar entender é a diferença entre um feto e um bebê - se é que há diferença, não vamos começar com ganho de causa pra nenhum dos lados! Essa questão é o pote de ouro no final do arco íris desse debate! Para o alto e avante!

Pode elencar o que você quiser: capacidade de amar, de sentir empatia, de sentir dor, de se comunicar. Cidadania, pensamento, imaginação, racionalidade. Você pode pensar em qualquer característica que permita que você diga: "se o feto tem isso, então é um bebê". Eu te desafio: qualquer aspecto no qual você pensar vai depender completamente da existência de uma estrutura fisiológica chamada sistema nervoso central. Falando bem toscamente, é o que temos dentro da nossa caixola e da coluna vertebral: cérebro e medula. Eu sei que a gente gosta de pensar que somos seres transcendentais e que nossa luz seguirá se derramando pelo universo além da eternidade, mas até onde a ciência pode comprovar - eu sei, a ciência não é perfeita, mas ela é bem legal, vai - somos feitos de matéria e energia (não a dos duendes, a dos átomos), e até nossos mais psicodélicos sonhos decorrem de uma interação físico-química. Sonhos, aliás, são exemplos de fenômenos que não existem sem sistema nervoso central. Nós não sabemos ao certo se gatos e vacas sonham (todos os mamíferos têm sistema nervoso central), mas nós temos bastante certeza de que árvores e ostras não sonham. E nós também temos certeza: fetos não sonham, não amam, não sentem empatia ou dor, não se comunicam. Não têm cidadania, pensamentos, imaginação, racionalidade. 

Com 8 semanas. Você pode achar fofo; ele ainda não pode achar nada.
Pode parecer frio pensar no feto como um reles organismo. Tenho amigas que planejaram suas gestações e amaram seus fetos a partir do instante em que o xixi fez aparecer dois risquinhos no teste de farmácia. É que as minhas amigas têm sistema nervoso central, e quem tem sistema nervoso central - vejam que bonito - tem capacidade de amar o que for: fetos, animais, dinheiro, a poltrona da bisavó. Há até quem ame ideias extremamente complexas como o universo, o anarquismo ou algum deus. Mas o feto, embora esteja crescendo e se alimentando na barriga da gestante, não pode corresponder ao afeto que os adultos ao redor da barriga eventualmente dediquem a ele, tanto quanto nenhuma das minhas preciosas orquídeas pode me amar de volta. Eu sei que é tocante ver aquelas imagens dos fetos dentro da barriga. Eles parecem tão humanos, com seu bracinhos de tiranossauro e sua cabeça desproporcional e translúcida! Mas essa é só uma imagem que nosso sistema nervoso central, via de regra, traduz como digna de afeto. É bonito que sejamos capazes de sobrepor aos fatos os mais diversos afetos, mas é tolo negar os fatos. Os fetos podem vir a ser milhares de coisas. Eu e Hitler, você e Gandhi, todos já fomos fetos. Mas para falar sobre aborto precisamos nos referir não ao que o feto pode se tornar, mas ao que é. 

Fato: não existe nenhum conflito moral no aborto de um feto sem sistema nervoso central formado. É por isso que a lei que se discute hoje no Brasil (fiquem tranquilos, não tem nenhuma chance de passar) autoriza o aborto até a décima segunda semana de gestação. Essa data é apontada pela Medicina como o marco após o qual o feto já seria capaz de sentir, uma vez que seu sisteminha nervoso central já estaria lá. Tem gente que é a favor do aborto mesmo depois disso, mas aí a discussão é outra. Aqui eu falo sobre o parâmetro que balizou as legislações de praticamente todos os países que descriminalizaram o aborto. Falo sobre a questão que já foi exaustivamente debatida em todos os tribunais internacionais que se prezem: aborto até a décima segunda semana, gente, tá tranquilo, tá favorável. 

Pra finalizar, faço um apelo às irmãs de luta para que enfrentem as perguntas de quem discorda de nós. Nós precisamos respondê-las, e precisamos inclusive pautá-las. Você deve ser capaz de olhar nos olhos do feto, e se encontrar lá alguma poeira de humanidade - mesmo que seja por motivos religiosos - você precisa se perguntar se é realmente a favor do aborto. E se você não for, tudo bem. Você não é um monstro por isso. Mas nós precisamos fazer isso se queremos engordar o nosso movimento lindo com conteúdo sólido, com conceito, com argumento dos bons! E se o nosso argumento não for o mais forte, que a gente possa mudar de ideia. Mudar não é vergonha. Vergonha é passar a vida bebendo certezas fáceis e recusando as perguntas que incomodam.


Reflexões de uma lagarta no Facebook

terça-feira, 31 de maio de 2016

Boas garotas não são estupradas vol. II

por Letícia Bahia


A situação é epidêmica. De fevereiro a abril deste ano o Ministério da Saúde registrou pouco mais de 91 mil casos de zika. Antes disso, em dezembro passado, a Organização Mundial da Saúde emitiu alerta global sobre a epidemia. Mas, apesar da comprovação da relação entre o vírus na gestação e casos de microcefalia, é outra a epidemia que tira o sono das mulheres. 

Estima-se que 527 mil tentativas ou casos de estupro ocorram todos os anos no Brasil. É bom repetir, pra que se registre a ferro: estima-se que 527 mil tentativas ou casos de estupro ocorram todos os anos no Brasil. A informação é de relatório do IPEA. Siga comigo que vai piorar: O cálculo pra se chegar a esse número leva em conta o número de estupros reportados e uma série de outros dados, analisados e combinados a partir de metodologias estatísticas que estão longe da compreensão da maioria de nós. Pra quem quiser se arriscar, o processo está descrito no link acima. Pra quem quiser se estarrecer, destaco um trecho: 

"essa estatística [527 mil tentativas ou casos de estupro] deve ser olhada com bastante cautela, uma vez que (...) talvez a metodologia empregada (...) não seja a mais adequada para se estimar a prevalência do estupro, podendo servir apenas como uma estimativa para o limite inferior de prevalência do fenômeno no país".

Veja estes objetos
"Limite inferior". Em português claro: o Brasil é palco de pelo menos 527 mil estupros ou tentativas de estupro a cada ano. É bom repetir, pra que se registre a ferro: o Brasil é palco de pelo menos 527 mil estupros ou tentativas de estupro a cada ano. Para aqueles que se chocaram diante dos 30 estupradores da jovem carioca cujo vídeo circula nas redes sociais, apresento este outros 526.970. Já é o suficiente para o alerta de epidemia? Podemos chamar os bombeiros, o exército, pedir ajuda à ONU, cogitar o cancelamento das Olimpíadas? Podemos, finalmente, encarar a questão com a devida seriedade, estampar manchetes dignas de epidemia e deixar de lado o medo de soar politicamente correto ou feminista "demais"? Podemos, finalmente, falar sobre cultura do estupro, esta estrutura social que, em um processo contínuo e recíproco, nos forja e é forjada por nós, e que não poderia resultar em outra coisa além de uma verdadeira epidemia de estupros?

Veja que belos enfeites
Não creio que a maioria de nós esteja pronto para essa urgente tarefa. A maioria de nós não se inclui no pacote "sociedade" de modo que não reconhece como (também) sua a cultura que critica. É marca do brasileiro deixar para lá suas mazelas. Nunca passamos a limpo nosso passado escravocrata. Também continuamos pagando os juros da fatura não quitada da ditadura militar. Por que seria diferente com as mulheres? O contador de estupros aumenta sem parar. A jovem carioca é uma, uma entre centenas de milhares que virou notícia. Talvez alguns de seus agressores sejam presos, mas pouco importa. Já já o frenesi vai passar e as redes sociais vão respirar aliviadas porque ufa!, aquele caso isolado ficou pra trás. É sempre assim, e enquanto for assim, nós, feministas, seguiremos estudando, analisando e sabotando essa estrutura. Para aqueles que querem refletir sobre essa estrutura que chamamos de cultura do estupro, que abram-se os portões. 

Veja sem moderação
A primeira coisa que fazemos quando recebemos a notícia da existência de um bebê é especular sobre o sexo. Antes mesmo de saber o nome, sabemos o sexo. É sempre a primeira pergunta que se faz a alguém que segura um bebê. A divisão homem-mulher, apesar de estar muito longe de dar conta de toda a nossa complexidade, é, ainda hoje, muito fundamental. E para garantir sua continuidade é preciso reafirmar e manter a diferença entre estes dois grupos. Nós (e isso me inclui e te inclui) fazemos isso por meio do que o Feminismo chama de socialização feminina ou masculina. A fábrica da socialização masculina treina os meninos para a agressividade, para o uso do corpo, para a competitividade, para cultivar e exercer o desejo sexual, para revidar, para falar mais alto, para não admitir traição. Já nós, somos treinadas para o recato, para não reagir, para habitar o medo, para sermos belas, para hipervalorizar o desejo do homem que se atrai por nós, para falar baixo, para não conhecer nosso corpo. Isso se dá por meio das brincadeiras, da imitação de comportamentos, de falas corriqueiras. Repare como tratamos meninos e meninas de forma diferente. "Que bonito o seu vestido, Maria!". "Que bacana o seu carrinho, João!". "Maria está parecendo uma boneca!". "Qual o herói favorito do João?". 


Veja que sexy
Os exemplos estão por todos os lados. Eu sei que em um primeiro momento pode parecer besta pensar na Branca de Neve como elemento da cultura do estupro, mas quando você se dá conta do quanto mensagens como essa são repetidas, você começa a ver a imagem que as milhares de peças do quebra-cabeça formam. Branca de Neve (e sua colega Bela Adormecida) é uma entre as tantas mulheres que habitam o universo infantil na forma de uma relação abusiva, na qual ela tem um papel passivo. Pouco ou nada se sabe a respeito do que ela pensa e sente, inclusive (e principalmente) na hora do beijo. Pense nos valores que estão postos nessa história e veja se você consegue pensar em histórias nas quais o homem é quem está nesse lugar. Nenhuma, né?  Não estou afirmando que um garoto vai se tornar um estuprador apenas porque assistiu um pornozinho no RedTube, mas precisamos reconhecer que a repetição de ideias que fundamentam um estupro, embora não sejam suficientes pra formar um estuprador, claramente estão deixando sua marca - em 527 mil casos por ano. 

Vamos pensar na socialização como uma fábrica de brinquedos. Se você submeter todos aos mesmos processos, utilizar os mesmo materiais, pintá-los com as mesmas tintas, eles certamente terão um aspecto final bastante homogêneo, certo? Um ou outro pode dar errado, mas isso não vai fazer você modificar sua linha de produção. Agora imagine que você tem muitos, muitos brinquedos quebrados. Não sei, talvez uns 527 mil por ano. É muito brinquedo quebrado, concorda? Será que não é o caso de verificar a procedência da matéria prima, testar o maquinário da fábrica ou contratar novos engenheiros? Será que não é o caso de pensar o que está acontecendo no processo de fabricação ao invés de tentar consertar tanto brinquedo quebrado?


Veja quanto glamour
A engrenagem dessa fábrica - é preciso que reconheçamos - somos todos nós. A cultura do estupro não é um estupro. É um equívoco se deparar com casos como o da jovem carioca e classificá-lo como cultura do estupro. Aquilo ali se chama crime, e é apenas o sintoma mais cruel de um processo cultural muito maior, corriqueiro e não criminoso (embora repugnante). A cultura do estupro é a repetição e a naturalização de valores que estruturam um estupro. Penso que seja fundamental fazer essa diferença, porque fazer uma leitura a partir do conceito de cultura do estupro (em detrimento de análises isoladas e posteriores a cada caso) é o que vai nos permitir adicionar outros temperos a este caldo cultural e, finalmente, produzir conceitos de feminilidade e masculinidade (enquanto precisarmos deles) que sejam baseados não em hierarquia e submissão, mas na na valorização da diversidade. Quando a gente tiver chegado lá e nosso contador de estupros crescer na velocidade de uma Islândia, aí talvez a gente possa se chocar diante de um caso como o da jovem carioca. Daí talvez a gente possa se perguntar "como?" e "por quê?". Hoje não. Hoje a gente já tem boas pistas de como e porque. Então é o caso de olhar ao redor e apontar tudo que possa ser lido como cultura do estupro. Não para proibir - o estupro já é proibido, lembram? - mas para promover a mudança cultural de que a gente precisa. 

Veja o que elas merecem
Não estou dizendo que não deve haver punição para estupradores. Sou frequentemente questionada a esse respeito. Respondo sempre que sou contra o endurecimento das penas, mas respondo a contragosto, porque perguntar o que devemos fazer com os homens que estupram rouba o tempo e a energia que devemos destinar a descobrir como parar de produzir estupradores. 527 mil estupros anuais é o que se pode chamar, sem metáforas, de linha de produção de estupradores. A internet está infestada de comentários descrevendo as torturas que deveriam ser impostas aos 30 agressores, mas a que isso se presta, se a fábrica segue operando a todo vapor? Nada muda, porque o problema é estrutural. É por isso que precisamos transcender a fase do estômago e pensar com a cabeça, desenvolver estratégias e compreender que não tem milagre: qualquer mudança vai demorar.     

Vejamos o exemplo da cultura do consumismo. Essa é uma expressão já amplamente aceita, e usá-la como ferramenta de combate ao consumo exacerbado significa pensar que o inimigo é uma cultura e não uma fábrica de brinquedos ou de automóveis. Então, o que você vai fazer é conversar com seus filhos sobre isso, levá-los ao mercado e discutir as compras junto com eles, se certificar de que a escola está abordando essas questões, conversar com ele sobre sobre o que ele está absorvendo do que assiste na TV. Você pode até tentar fechar o shopping center da sua cidade, mas esse me parece um caminho pouco inteligente...  


Veja que delícia
Pouco a pouco o Feminismo vem conseguindo algumas mudanças - embora a cultura do estupro, em suas mais diversas dimensões, ainda esteja bem longe do mainstream. A representação da mulher nas histórias infantis vem mudando, as propagandas vem mudando. Falta muito, mas estamos caminhando. 


E bom, se estamos falando de transformar um cultura, você pode começar agora. Não é preciso esperar o próximo estupro midiático. Ele virá, tenhamos certeza, mas você deve se perguntar se quer ser parte do problema ou parte da solução. No caso da segunda opção, prepare-se: você será o chato do Facebook, o radical da família, o mala dos grupos de Whatsapp. Uns me chamam até de petista - eu rio. 

Ser parte do problema é fácil. Basta seguir sua vida e esperar a poeira desse caso baixar. Não demora. O assunto vai desaparecer da mesa do bar e você poderá continuar repetindo suas frases e comportamentos machistas, como todo nós fazemos em algum grau. Fazer parte da cultura do estupro não é muito uma escolha, porque a gente nasceu e cresceu embebido nela. A escolha está em ser um crítico, inclusive de si próprio. 



"Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro se tornar cinzas?"
Friedrich Nietzsche


  





terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Quitandinha abre vaga para Relações Públicas

por Letícia Bahia


Prezados,

Venho por meio desta me candidatar ao cargo de Relações Públicas do bar Quitandinha. Acredito que posso ser de grande ajuda no sentido de gerenciar a crise envolvendo a cliente Julia Velo e recuperar a imagem do estabelecimento. Para comprovar o que digo, envio não meu currículo, mas uma resposta que poderia ter sido publicada em nome do bar e que, acredito, teria evitado que esta crise tenha tomado as proporções que tomou.

Estou à disposição para um encontro presencial no qual possamos nos conhecer melhor, certa de que esta oportunidade será positiva para todos nós.

Atenciosamente,

Letícia Bahia


Carta aberta a Julia Velo

Prezada Julia,

Antes de mais nada, queremos agradecer sua presença naquele 4 de fevereiro em nosso bar. Nossos clientes, todos eles, são nossa razão para existir e continuar fazendo do Quitandinha um bar de sucesso desde 1993. Nós queremos que você volte, Julia, e por isso te escrevemos. 

As redes sociais rapidamente viralizaram um relato no qual você relata uma situação de assédio no nosso estabelecimento, o que é inadmissível. Não por ser o nosso estabelecimento, não por ser você, mas porque qualquer situação de assédio é inadmissível. Queremos que saiba, Julia, que estamos estarrecidos com sua história, e aqui pedimos desculpas publicamente por qualquer conivência que possa ter havido por parte de nossa equipe. Sabe, Julia, essa coisa de Feminismo e essa discussão sobre assédio é novidade pra nós. Nos preocupamos com o bem estar de nossos clientes acima de qualquer coisa, e somos particularmente sensíveis à questão das mulheres, justamente porque, cada vez mais, nos damos conta da realidade que vocês enfrentam diariamente. Mas ainda temos muito o que aprender, e vamos aprender.

Tenha certeza de que os acontecimentos do dia 4 serão amplamente discutidos junto com a equipe e que faremos o impossível para que você e todas as mulheres possam frequentar o Quitandinha sem preocupação. Esperamos que você volte, Julia, e que possa ser nossa parceira na construção de um espaço cada vez mais acolhedor.

Grande abraço,
Equipe Quitandinha


***

Epílogo

Depois de meter os pés pelas mãos em notas desmentindo e desqualificando a versão de Julia Velo, o Quitandinha divulgou, ontem, o que seriam as imagens das câmeras de segurança referentes ao episódio. A legenda é tendenciosa e o vídeo parece ter a intenção - eles não vão parar de atirar no próprio pé? - de limpar a imagem do bar e desmentir o relato de Julia. Qualquer relações públicas desaconselharia esta postura. As regras de ouro do mimimi corporativo são claras: "não enfrentarás o cliente. Buscarás, sempre e até a falência, uma postura conciliadora". Os caras faltaram nessa aula, e pagarão caro por isso. Hoje veremos mais um levante feminista nas redes sociais.


Agora vamos prosseguir ao que de fato importa, que é o dia 4 de fevereiro. Qualquer que seja sua opinião a respeito, não se engane: ela é apenas a sua opinião. É impossível saber o que de fato aconteceu. Mesmo com as filmagens - e ainda que elas sejam legítimas, porque vai ter gente questionando isso - não é possível saber. Situações de assédio são sempre confusas. Elas geralmente envolvem bebida, envolvem diálogos acalorados, envolvem picos de emoção. Nossa memória nunca (nunca) é plenamente confiável, nunca é a transcrição fiel dos fatos, e isso se agrava na presença desses elementos. O que a gente pode e deve buscar se quiser de fato entender o que houve ali são versões. Como é que a gente pode querer buscar verdades se estamos, nós mesmas, redesenhando todas as definições de assédio? 

Ainda estamos naquela transição cinza em que o que é assédio para um pode não ser assédio para outro. Minha mãe mesmo acha que nós, feministas, estamos exagerando e que ouvir um "gostosa" na rua é elogio. É a percepção dela, como é que eu vou dizer que uma percepção está errada? É claro que é preciso que a gente se posicione diante das Julias Velos que inundam as redes com suas histórias de assédio (embora me assuste o quanto muitas feministas ignorem a importância de se ouvir o outro lado). É importante que a gente mostre nosso repúdio a lugares coniventes com o assédio. Mas o mais importante - porque o mais importante é que assédios parem de acontecer, não é? - é que a gente possa conversar sobre isso, ter clareza sobre as nossas definições e pleitear que os homens as acatem sem questionamento, porque o que diz respeito ao corpo do outro a gente acata e ponto. Não sei o que houve na noite de 4 de fevereiro, mas posso afirmar categoricamente que o Quitandinha cometeu um erro grave ao se esquivar desse debate. É claro que o bar é conivente. Aposto meu polegar direito que ali acontecem assédios todos os dias. Ali e em qualquer outro boteco. Pois se eu, com meu olhar biônico de feminista volta e meia me percebo conivente com situações de opressão, como é que vai um dono de bar querer se isentar desse caldo cultural no qual estamos todos imersos? Perderam uma oportunidade e tanto de se colocar junto à vanguarda, isso sim. 

No mais, torço pra que a gente possa se debruçar menos sobre "a verdade" do 4 de fevereiro e mais sobre o contêiner de aprendizado que essa história traz consigo. Tem debate bom por aí, e se a gente der conta, todo mundo ganha.  

À Julia, desejo que esteja sendo bem cuidada por seus queridos e queridas, que não há de estar sendo fácil.

Ao Quitandinha, no qual eu jamais trabalharia, uma dica: desencana desse vídeo, vamos conversar?

* curta Reflexões de uma lagarta no Facebook

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Estupros perfeitos

Poster do filme Irreversível
por Letícia Bahia


Quem assistiu ao longa francês Irreversível (2002) talvez não durma até hoje. Entre muitas cenas muito violentas, talvez a mais perturbadora sejam os 10 minutos sem cortes em que a personagem da italiana Monica Belucci é estuprada e espancada em uma passagem subterrânea de Paris. Puro terror, a cena representa o pânico maior de 10 entre 10 mulheres. Além da violência hedionda, somos aterrorizadas também pela aleatoriedade do evento. Se o crime de estupro por si só já retira da mulher por completo o controle sobre seu próprio corpo, a ideia de que homens como o criminoso de Irreversível podem estar em qualquer lugar - o que significa que qualquer uma pode ser a próxima vítima - nos arranca a sensação de controle mesmo que jamais sejamos vítimas. No entanto, em cerca de 40% dos estupros de mulheres adultas, o perigo não é o transeunte de capuz que te espera na noite escura. 

Em março de 2014 o IPEA publicou um relatório detalhado sobre os números do estupro no Brasil. Ali ficamos sabendo que quando a vítima é adulta 40% dos agressores não são desconhecidos. Os números referentes às vítimas adolescentes são ainda mais assustadores: 62% dos estupradores não eram um transeunte qualquer, chegando a estarrecedores 87% de criminosos conhecidos das vítimas quando elas são crianças. Se é tão grande - e tão próxima - a possibilidade de sermos violentadas por um amigo, um parente, um colega de trabalho, por quê nos preocupamos tão pouco com isso? 

A tragédia de Liana Friedenbach:
vítima, estupro e estuprador perfeitos 
Muitas feministas já escreveram sobre a vítima perfeita. Assim que se vê livre de seu estuprador, a vítima perfeita se levanta e leva sua dignidade à delegacia mais próxima para reportar o crime. Lágrimas, roupas rasgadas e hematomas nos pulsos e nas virilhas contrastam com seu discurso coerente, encadeado e fluido, e a cada vez que um novo policial lhe faz perguntas ela repete, chorosa e nos menores detalhes, como se debateu e gritou por socorro, apesar do medo da morte. A vítima perfeita é jovem, atraente, não bebe e tem passado impecável. A vítima perfeita nunca estava em uma festa, nunca fez sexo consensual com seu estuprador, nem antes nem depois do crime, e sempre veste roupas comportadas. A vítima perfeita é a exceção, mas o cinema, as novelas e a cobertura sensacionalista dos raros casos que se encaixam no padrão alimentam o mito de que a exceção é a regra. Entre muitas razões, isso é grave porque retira das vítimas reais a credibilidade. Na medida em que a mulher não corresponde ao imaginário coletivo de como deve ser e se comportar a vítima de estupro, passa-se a questionar sua condição de vítima. Assim, é comum que suas tragédias fiquem impunes e quase sempre não reportadas. 

É o caso, inclusive, de questionar os números do IPEA, uma vez que eles se baseiam em dados oficiais sobre estupros reportados. Ora, não é preciso sacada de Sherlock para imaginar que é muito mais fácil denunciar um estuprador desconhecido do que um chefe, um ex-namorado, um padrasto - situações nas quais a vítima ainda terá que dar conta do emprego ou da família brasileira indo pelo ralo. Ou seja: é razoável supor que, fossem reportados todos os estupros, os dados do IPEA apontariam para uma proporção ainda maior de agressores conhecidos das vítimas. Sim, porque se há vítima perfeita, há também o estupro perfeito, aquele que ninguém questiona, que nunca é confuso, nunca envolve contradições. O estupro perfeito tem sangue, algemas, gritos abafados por mordaças. Se tiver aparelhos cirúrgicos com cara de filme de terror, tanto melhor. Camisinha, nem pensar. 

Estuprador perfeito e feminicida: a mídia ama
Há de ser por isso que não nos preocupamos com nossos amigos estupradores: nós só acreditamos em estupradores perfeitos! Se não forem monstros do calibre do Maníaco do Parque ou Mike Tyson (negro, melhor ainda!) eu não acredito. Ocorre que eles existem, essa criaturas reais cujos estupros não cabem na nossa imaginação. E o que é pior: eles podem até ser gente boa. 

Fora do cinema e da TV, há estupradores de todos os tipos. Há aqueles que estupram suas esposas a cada porre e, no dia seguinte, genuinamente se arrependem, mais uma vez. Há os que usam bebida para facilitar seu trabalho (a faculdade de Medicina da USP está cheia destes, apesar de a Universidade se esquivar de enfrentar o problema). Desde 2009, quando a definição de estupro no código penal passou a ser mais abrangente, passamos a ter também aqueles que estupram com as mãos e com a boca - a sua ou a da vítima. Alguns estupradores imperfeitos efetivamente acreditam gostar de suas vítimas, e as vezes suas vítimas também acreditam na farsa de um amor que, de tão grande, não consegue se curvar ao "não" da mulher amada. Há inclusive uma categoria bastante interessante e bastante comum de estupradores imperfeitos: aqueles que não se sabem estupradores. Eles interpretaram o "não" como charme, eles estavam bêbados, eles não viram sentido em parar quando a roupa já estava no chão depois do vinho e das rosas só porque, baixinho, ela disse que não queria mais. É difícil, muito difícil assimilarmos a existência dessa categoria. Posso falar em primeira pessoa, porque conheço um deles. Conheço sua esposa e sua adorável filhota, e relutei em acreditar quando uma amiga, vítima imperfeita, me contou que em uma festa, ambos bêbados, ele a estuprara. Não havia sido um estupro perfeito, como eu podia acreditar? Pois este homem jamais saberá que cometeu um estupro, e eu tenho que dar um jeito de fundir, na mesma pessoa, um estupro e um cara bacana, honesto, progressista. Parece loucura, mas é apenas a complexidade da realidade. 

A ilusão das figuras puramente boas ou puramente más é importante para ensinar o mundo às crianças, mas sustentar essa ilusão na vida adulta exclui um mar de mulheres, vítimas imperfeitas de estupros imperfeitos, que não se encaixam no restrito estereótipo. E não é só isso: falar em estupro como algo necessariamente sanguinolento - e em estupradores como a encarnação do mal - impede um olhar mais cotidiano para as formas de produção da cultura do estupro, tema urgente que abordei neste texto. Sim, porque o mal está sempre longe de nós, os estupradores estão sempre lá longe, junto com os leprosos e os assassinos. Nada temos a ver com isso, não conhecemos estas pessoas e não ajudamos a produzi-las reforçando estereótipos de gênero ou aplaudindo piadas misóginas. 

Nós não vamos frear a epidemia de estupros enquanto não desmistificarmos a figura do estuprador perfeito. Legal a gente ter assistido Disney na primeira infância, mas aqui no mundo real não tem princesa, não tem vilão: é tudo gente, e gente é sempre um caminhão de contradição. Os estupros estão acontecendo no seu ambiente de trabalho, na casa bonita da rua de cima. Só que enquanto a gente vive a ilusão de que esses agressores são sempre loucos escolhidos a dedo por satã, os estupradores imperfeitos estão por aí contando seus abusos em tom de piada.    

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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Não é pedofilia, é apenas escroto

por Letícia Bahia


Saiu do BBB o moço que as redes sociais definiram como pedófilo. Dentre os milhares de sentidos que podemos imputar à eliminação de Laércio, o cinquentão que disse gostar de "novinhas", escolho de acreditar que o Brasil que assiste ao Big Brother expressou ali seu repúdio à postura do tigrão, muito provavelmente [lá vou eu com minhas suposições] por efeito da hashtag feminista que em 2015 inundou a internet com histórias de primeiro assédio. Dos 15 minutos de fama que lhe trouxe a participação de duas semanas no programa devem restar não mais que 2. Portanto, Laércio, obrigada pela participação, um beijo pra sua mãe, pro seu pai, a saída é por ali. E agora foquemos na discussão, tão importante e quase sempre tão leviana, sobre esse problema de os homens fetichizarem as mulheres mais novas. 

Comecemos com definições, porque definições importam. Para a Psiquiatria o transtorno de pedofilia é a preferência sexual por crianças pré-púberes. No dicionário Michaelis temos 1) perversão que leva o adulto a ter atração sexual por crianças e 2) ato sexual de adulto com crianças. Mas o que é uma criança? Uma novinha é uma criança? Uma adolescente é uma criança? Aqui é claro que vamos recorrer ao ECA, o documento mais importante para a proteção integral da criança e do adolescente. Pois o ECA nos diz que a gente vira adolescente no dia em que faz 12 anos. Antes disso, afirma, somos crianças, e assim isentamos os rapazes que namoram garotas bastante novinhas da acusação de pedofilia - de acordo com o ECA, repito.  

É preciso que tenhamos cuidado com as definições, porque as definições importam. Mas o maior problema, que talvez esteja por traz da compulsão feminista em taxar de pedófilo qualquer homem que se relacione com meninas que não atingiram a maioridade, seja o afã de recorrer à lei para resolver qualquer problema. É quase como se estivéssemos dizendo que tudo que está dentro da lei é correto, e qualquer mau caratismo, qualquer escrotidão ou inescrupulosidade, possa ser enquadrada como crime no livro das leis. Calma pessoal, e calma especialmente para minhas companheiras feministas. O livro das leis não foi escrito pra dizer o que é certo ou errado (essa é a Bíblia), mas para dizer quais as condutas que ameaçam a sociedade e que, portanto, precisam ser reprimidas. Sua namorada te traiu com seu melhor amigo? Doloroso, mas não é assunto pra ser tratado em juízo. Há que se saber quando devemos recorrer a ele e quando é o caso de batalhar por mudanças culturais, que envolvem petições, hashtags, atos públicos de repúdio (pobre Laércio), mas não envolvem cadeia. É mais legal quando a gente consegue resolver os pepinos sem cadeia. Isso é sintoma de uma sociedade madura e capaz de dar conta de si. Ou será que a gente só repudia o sistema prisional e a lógica punitiva quando discutimos a redução da maioridade penal?

É claro que agressores devem ser punidos, e há casos em que a liberdade destes homens significa risco para toda a parcela feminina da população. Mas e se ao invés de a gente pressionar Ministério Público e o escambau pra legislar e punir, legislar e punir, legislar e punir, a gente procurar entender que diabos está acontecendo pra eu cruzar um Laércio falando das novinhas a cada esquina? Como é que a gente pode achar que trancafiar esses caras na cadeia vai resolver, se na outra ponta há uma fábrica de Laércios sendo cuspidos na linha de montagem? 

Ser criança é sexy, não?
É evidente que esses moços estão em posição de vantagem em relação a suas "parceiras". Pra começo de conversa, a escolha de parceiras muito mais novas se dá fundamentalmente por conta da aparência, e aí é bom lembrar os rapazes que nós não somos um vaso e não servimos para enfeitar suas vidas. Para além disso, é preciso perguntar o que na aparência juvenil atrai tantos homens e, inversamente, por que é tão comum que mulheres se atraiam por homens mais velhos, pela mecha branca do George Cloney e por aquele ar de maturidade. Mesmo quando nos referimos a meninas de 15, 17 anos, elas estão escolhendo, ainda que sem o respaldo da lei. Então vamos refletir sobre esse par: de um lado a menina-mulher, saindo da escola de saia curta e olhar inocente. A pele lisa e bunda dura transcrevem no corpo sua inexperiência, e a inconsequência de quem é jovem demais para ter experimentado as consequências das próprias escolhas faz a vida parecer uma brincadeira. No outro lado do ringue está ele, charuto na boca e olhos de garfo e faca. Ele já tem completo conhecimento sobre seu corpo e seu limites, e seu corpo inventa na mente o sem fim de estripulias sexuais que ele vai fazer com ela. Quem será que vai ganhar? 

A assimetria dos papéis em relações de adolescentes (ou jovens adultas) com homens muito mais velhos constitui toda uma categoria de fetiches masculinos. No RedTube, o YouTube da pornografia (e escola para muitos adolescentes) a categoria Teens está entre as mais populares e tem mais de 17 mil vídeos. Mas não é preciso ir para os meandros sórdidos da pornografia para entender como os homens são treinados para sexualizar garotas - e como as garotas são treinadas para erotizar sua inocência. Em 2014 um ensaio da Vogue Kids escandalizou as redes sociais por expor crianças em poses dignas de revista masculina. O Ministério Público determinou a suspensão da circulação daquela edição, mas a revista segue fotografando crianças (quase sempre meninas) em roupas e poses adultas, ajudando a alimentar a fantasia de uma maturidade que não existe. 

Ensaio da Vogue KIDS
E qual é o caminho? Será que queremos proibir ensaios de moda com crianças? Queremos fechar o RedTube, ou impedir que a próxima protagonista da novela das nove namore o José Meyer? Não será melhor parar de alimentar o monstro?

Gosto do caminho dos abaixo assinados, dos protestos, dos memes. Gosto da reflexão que busca elementos na Psicologia e na História, e gosto, sobretudo, de apresentar esse debate e essas perguntas tão importantes a quem nunca ouviu falar de Feminismo. É difícil, eu sei. Bater é mais fácil, e pedir aos legisladores que resolvam por nós, mais ainda. Mas empoderamento feminino, essa expressão que já está quase gasta, precisa significar também que a gente vai topar o embate, a discussão madura, e que a gente vai sim conseguir defender nosso ponto de vista com argumentos que o tornem irrefutável.

Ontem enquanto eu fazia a unha um senhor com sotaque nordestino e fala doce cortava o cabelo de um homem. O senhor me ofereceu café e conversou comigo sobre o excesso de violência que o Datena nos contava na TV. A certa altura cansou-se dos tiroteios e mudou para um canal onde uma moça dançava com pouca roupa. "Como é bonita as novinha!", ele disse. Não acredito que ele seja um pedófilo. Não me pareceu má pessoa, muito embora esse comportamento seja escroto. O que é que vamos fazer com este senhor? Vamos construir leis que deem conta de tratá-lo como bandido? Ou vamos retribuir-lhe o café e convidá-lo para um dedo de prosa?    

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quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Papai Noel, Coca-Cola e câncer de pulmão

por Letícia Bahia


Minha geração assistiu à derrocada do cigarro. Acredito que esse produto esteja fadado à extinção, ou a tornar-se passatempo esporádico de um público irrelevante em clubes e tabacarias.

Os malefícios do cigarro não são segredo pra ninguém, e isso não é de hoje. Uma vez perguntei ao meu pai, fumante desde sempre, se ele não sabia que o cigarro fazia mal quando começou a fumar. “Ah, filha”, ele respondeu, “sabia, mas...”. Pois é. As pessoas “sabiam, mas...”. E cada vez mais “sabia-se, mas...”. Quando eu comecei a fumar, lá por volta de 1998, eu tinha total consciência de que o cigarro era nocivo. Mas...

A batalha contra o cigarro só começou a ficar acirrada quando os governos começaram a apontar suas armas contra a indústria tabagista. Antes disso, toda a informação que eu tinha sobre o cigarro – inclua-se nisso os apelos de minha mãe para que meu pai largasse o vício – dissolvia-se naquele glamour que era, aos meus olhos de menina, ser fumante. Como poderia a informação científica competir com o apelo sedutor das pessoas bonitas, magras, livres (¿tem criatura mais livre do que aquele caubói do cigarro, cavalgando em pelo naquelas paisagens de cinema?)?

Em 31 de maio deste ano a indústria tabagista recebeu o golpe fatal com a regulamentação, pelo governo federal, da lei antifumo que proíbe qualquer propaganda, além do fumo em qualquer espaço público com algum tipo de cobertura. A lei entrou em vigor em dezembro, quando até aquele cigarrinho no toldo da banca ou debaixo do ponto de ônibus será proibido. Muito antes disso, já assistimos à proibição do cigarro em ambientes fechados, a inserção ostensiva de avisos sobre os males do cigarro nas embalagens, restrições crescentes à propaganda, extinção de eventos culturais patrocinados por marcas de cigarro como os saudosos Free Jazz Festival e Hollywood Rock. Paralela e obviamente, o número de fumantes caiu drasticamente.

Mesmo assim, muita gente diria que eu e meu pai somos burros por termos começado a fumar. E você que toma Coca-Cola, você é burro? Você não sabe que açúcar em excesso faz mal?

Não, colega, você não é burro. O raciocínio simplista que nos leva a responsabilizar exclusivamente o indivíduo é parte do problema. A criança assiste TV e lá está aquele urso da Coca-Cola, olhar mais terno que o da Madre Teresa de Calcutá. Aquelas famílias de ursos polares só não são mais amadas do que o Papai Noel. Ao contrário do que alguns dizem, o bom velhinho não é criação da marca, mas com seu traje vermelho e branco virou o garoto propaganda mais notável da bebida. Sabidos que são, os publicitários da Coca-Cola botaram até você pra trabalhar de graça pra eles! Quantas vezes na sua linha do tempo apareceu uma lata estampando seu nome ou o nome de um amigo? Que legal que eles pensaram em você! Será que já dá pra chamar essa relação de amizade? 

Inversamente, as informações a respeito dos males causados pelo célebre líquido preto não estão nos papéis de presente do bom velhinho ou nas músicas que cantam aqueles ursos que a gente quer abraçar. O sujeito que compra uma lata de Coca-Cola não entra em contato ali, no ato, com os riscos embutidos na sua escolha – diferentemente do que acontece com o fumante. Ali, no ato, ele apenas "abre a felicidade", como diz uma propaganda da marca. As informações sobre os malefícios estão longe do consumidor, em jornais, artigos científicos, documentários. Quando muito, camufladas em algum canto obscuro da embalagem em fonte tamanho bula. Elas não estampam metade da embalagem, como acontece com o cigarro. Não têm chance na competição desonesta contra os ursos e os natais.

Como podemos esperar, diante deste cenário tão desigual, que as pessoas não sejam “burras”? Como podemos responsabilizar o indivíduo por perder a batalha, se o oponente é tão maior e mais poderoso?

É claro que existe responsabilidade pessoal quando alguém opta por um refrigerante em detrimento de um suco (eu disse suco, não néctar!). Mas é também óbvio – e a experiência com o cigarro demonstra isso – que o consumo moderado só vai ser regra quando se restringir, por meio de leis e políticas públicas, o poder de influência que a indústria de refrigerantes tem hoje. As intervenções possíveis não são novidade: inclusão do assunto alimentação no currículo escolar, incorporando inclusive a cantina como espaço de aprendizagem; proibição de campanhas voltadas ao público infantil – é claro que seu filho vai querer a bebida que o Sherk falou que é legal!; veiculação nas embalagens de informação sobre os riscos, a exemplo do que acontece com o cigarro. Essas são apenas 3 medidas que me ocorreram agora, de cabeça. Há muitos Jamie Oliver por aí desenvolvendo belos projetos de educação alimentar nas escolas, e a discussão sobre se é ético ou não (não, não é) fazer publicidade voltada para as crianças vem ganhando espaço (lembram-se da tartaruga da Bhrama, vetada pelo Ministério Público por dialogar com o público infantil?). É caminhando nesse sentido que podemos esperar bons resultados, e não jogando a culpa no indivíduo ou nos pais que não sabem dizer não.

O CEO da Coca-Cola ganha um dólar a cada vez que você chama um fumante de burro. É que ele não é nada burro e sabe que, se você pensa assim, você é um a menos para pressionar a escola do seu filho a não oferecer refrigerante na merenda e um a mais pra comprar a lata tão legal de Coca-Cola que tem o seu nome, mesmo que você não esteja com sede, e postar uma selfie com ela no seu Facebook. O CEO da Coca-Cola sabe, sobretudo, que pra você o estado não tem nada a ver com esse assunto e que você não vai pressionar seus governantes pra tomar providências que diminuam o faturamento da marca.

Por hora, assim caminha a humanidade. Segue crescendo a epidemia de obesidade no Brasil e no mundo e a juventude continua sendo, como diz a música dos Engenheiros do Havaí, uma banda numa propaganda de refrigerante.


* texto originalmente publicado no Facebook pessoal da autora em 25 de setembro de 2014