quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Papai Noel, Coca-Cola e câncer de pulmão

por Letícia Bahia


Minha geração assistiu à derrocada do cigarro. Acredito que esse produto esteja fadado à extinção, ou a tornar-se passatempo esporádico de um público irrelevante em clubes e tabacarias.

Os malefícios do cigarro não são segredo pra ninguém, e isso não é de hoje. Uma vez perguntei ao meu pai, fumante desde sempre, se ele não sabia que o cigarro fazia mal quando começou a fumar. “Ah, filha”, ele respondeu, “sabia, mas...”. Pois é. As pessoas “sabiam, mas...”. E cada vez mais “sabia-se, mas...”. Quando eu comecei a fumar, lá por volta de 1998, eu tinha total consciência de que o cigarro era nocivo. Mas...

A batalha contra o cigarro só começou a ficar acirrada quando os governos começaram a apontar suas armas contra a indústria tabagista. Antes disso, toda a informação que eu tinha sobre o cigarro – inclua-se nisso os apelos de minha mãe para que meu pai largasse o vício – dissolvia-se naquele glamour que era, aos meus olhos de menina, ser fumante. Como poderia a informação científica competir com o apelo sedutor das pessoas bonitas, magras, livres (¿tem criatura mais livre do que aquele caubói do cigarro, cavalgando em pelo naquelas paisagens de cinema?)?

Em 31 de maio deste ano a indústria tabagista recebeu o golpe fatal com a regulamentação, pelo governo federal, da lei antifumo que proíbe qualquer propaganda, além do fumo em qualquer espaço público com algum tipo de cobertura. A lei entrou em vigor em dezembro, quando até aquele cigarrinho no toldo da banca ou debaixo do ponto de ônibus será proibido. Muito antes disso, já assistimos à proibição do cigarro em ambientes fechados, a inserção ostensiva de avisos sobre os males do cigarro nas embalagens, restrições crescentes à propaganda, extinção de eventos culturais patrocinados por marcas de cigarro como os saudosos Free Jazz Festival e Hollywood Rock. Paralela e obviamente, o número de fumantes caiu drasticamente.

Mesmo assim, muita gente diria que eu e meu pai somos burros por termos começado a fumar. E você que toma Coca-Cola, você é burro? Você não sabe que açúcar em excesso faz mal?

Não, colega, você não é burro. O raciocínio simplista que nos leva a responsabilizar exclusivamente o indivíduo é parte do problema. A criança assiste TV e lá está aquele urso da Coca-Cola, olhar mais terno que o da Madre Teresa de Calcutá. Aquelas famílias de ursos polares só não são mais amadas do que o Papai Noel. Ao contrário do que alguns dizem, o bom velhinho não é criação da marca, mas com seu traje vermelho e branco virou o garoto propaganda mais notável da bebida. Sabidos que são, os publicitários da Coca-Cola botaram até você pra trabalhar de graça pra eles! Quantas vezes na sua linha do tempo apareceu uma lata estampando seu nome ou o nome de um amigo? Que legal que eles pensaram em você! Será que já dá pra chamar essa relação de amizade? 

Inversamente, as informações a respeito dos males causados pelo célebre líquido preto não estão nos papéis de presente do bom velhinho ou nas músicas que cantam aqueles ursos que a gente quer abraçar. O sujeito que compra uma lata de Coca-Cola não entra em contato ali, no ato, com os riscos embutidos na sua escolha – diferentemente do que acontece com o fumante. Ali, no ato, ele apenas "abre a felicidade", como diz uma propaganda da marca. As informações sobre os malefícios estão longe do consumidor, em jornais, artigos científicos, documentários. Quando muito, camufladas em algum canto obscuro da embalagem em fonte tamanho bula. Elas não estampam metade da embalagem, como acontece com o cigarro. Não têm chance na competição desonesta contra os ursos e os natais.

Como podemos esperar, diante deste cenário tão desigual, que as pessoas não sejam “burras”? Como podemos responsabilizar o indivíduo por perder a batalha, se o oponente é tão maior e mais poderoso?

É claro que existe responsabilidade pessoal quando alguém opta por um refrigerante em detrimento de um suco (eu disse suco, não néctar!). Mas é também óbvio – e a experiência com o cigarro demonstra isso – que o consumo moderado só vai ser regra quando se restringir, por meio de leis e políticas públicas, o poder de influência que a indústria de refrigerantes tem hoje. As intervenções possíveis não são novidade: inclusão do assunto alimentação no currículo escolar, incorporando inclusive a cantina como espaço de aprendizagem; proibição de campanhas voltadas ao público infantil – é claro que seu filho vai querer a bebida que o Sherk falou que é legal!; veiculação nas embalagens de informação sobre os riscos, a exemplo do que acontece com o cigarro. Essas são apenas 3 medidas que me ocorreram agora, de cabeça. Há muitos Jamie Oliver por aí desenvolvendo belos projetos de educação alimentar nas escolas, e a discussão sobre se é ético ou não (não, não é) fazer publicidade voltada para as crianças vem ganhando espaço (lembram-se da tartaruga da Bhrama, vetada pelo Ministério Público por dialogar com o público infantil?). É caminhando nesse sentido que podemos esperar bons resultados, e não jogando a culpa no indivíduo ou nos pais que não sabem dizer não.

O CEO da Coca-Cola ganha um dólar a cada vez que você chama um fumante de burro. É que ele não é nada burro e sabe que, se você pensa assim, você é um a menos para pressionar a escola do seu filho a não oferecer refrigerante na merenda e um a mais pra comprar a lata tão legal de Coca-Cola que tem o seu nome, mesmo que você não esteja com sede, e postar uma selfie com ela no seu Facebook. O CEO da Coca-Cola sabe, sobretudo, que pra você o estado não tem nada a ver com esse assunto e que você não vai pressionar seus governantes pra tomar providências que diminuam o faturamento da marca.

Por hora, assim caminha a humanidade. Segue crescendo a epidemia de obesidade no Brasil e no mundo e a juventude continua sendo, como diz a música dos Engenheiros do Havaí, uma banda numa propaganda de refrigerante.


* texto originalmente publicado no Facebook pessoal da autora em 25 de setembro de 2014

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