sexta-feira, 20 de março de 2015

Eu sou racista - vol II

por Letícia Bahia



Comecei este blog com uma postagem chamada Eu sou racista. Contei uma história real que julguei ser a prova cabal de que sim, eu sou racista. Muitos amigos, generosos que são, saíram em minha defesa. Que eu sou um exemplo de postura ética, que trato todas as pessoas com igual respeito, que sou até mesmo a favor das cotas! Mas acho que meus amigos palavreavam apenas para escutarem-se. Penso que se eu os convencesse do meu racismo, eles também teriam que encarar o próprio monstro no espelho. Pois com objetivo de me reafirmar como reprodutora desta nefasta mazela histórica, escrevo esta nova empreitada. Para começar, mais uma história real.

Estou na rua Mourato Coelho. Volto pra casa a pé, depois de algumas cervejas. Já passa da meia-noite e a rua está deserta. É quando o vejo: todo estatelado no chão, vômito secando na calçada que lambe a boca, roupas brancas e cabelos loiros. Estará dormindo? Estará vivo? Não há ninguém com ele, e penso que uma atitude minha pode resultar em ambulância, hospital, soro na veia, ressonância magnética na cabeça. Posso até mesmo salvar sua vida, se vida houver. 

Meu namorado está comigo e não parece hipotetizar o mesmo drama que eu. Diz que é apenas um bêbado, mas eu insisto para que verifiquemos o status do corpo. Aproximo-me de sua boca fedida e sinto sua respiração. Dorme profundamente, um sono que provavelmente só dormira quando bebê. Pergunto se não devemos revistar seus bolsos, procurar por um endereço ou pelo telefone de uma mãe aflita. Meu namorado quer ir embora, e então faz a pergunta que me desmancha feito papel molhado: "você faria tudo isso se ele fosse negro?". 

A resposta exata não é "não faria". A resposta mais precisa é "não fiz". Eu nunca fiz nada em todas as centenas de vezes que cruzei pessoas negras largadas na sarjeta. Estou de tal modo acostumada a ver estas pessoas nesse lugar - físico e simbólico - que naturalizei a situação e não me sinto impelida a fazer nada. Não parece haver nada para consertar. É triste, por certo, mas é como é. O menino branco, este não! Este está no lugar errado! Ele não pertence à rua, e a sujeira não lhe pertence. Pessoas brancas e loiras - eu aprendi - não são da rua. É claro que minha reação também leva em consideração as roupas, o andar, o aspecto do sujeito -  o que também é grave. Mas a pergunta que ouvi precisa ser respondida com honestidade: sim, a escala de melanina está entre os meus critérios.  Se isto não é racismo, estou no aguardo da nova definição. Eu sou racista, mas estou tentando deixar de ser. 

Minha vida tem sido fácil. Estou sempre no ponto estatístico em que todo brasileiro quer estar. Minha família sempre teve carro, televisão, computador casa (própria) grande com banheiro só pra mim. O que eu fiz pra ter tido tudo isso? Porra nenhuma. Aliás, eu poderia ter sido a pior filha do mundo, mas ainda sim meu pai teria feito o diabo a quatro pra me manter estudando no Santa Cruz, escola que ele e muitos consideram a melhor de São Paulo. Onze anos de educação de ponta, presente do nosso senhor Jesus Cristo, que me elegeu para nascer filha dos meus pais e não de uma mãe preta, pobre e solteira. Também ganhei na promoção, inteiramente grátis, viagens à França, Espanha, Argentina, Chile, intercâmbio em Londres, carro. Ah, e não nos esqueçamos de que também não tenho mérito nenhum por não ter sido uma criança subnutrida e sempre ter tido os melhores médicos à minha disposição. Ah, como eu gosto de ser branca. 

Aos amigos que me defenderam, eu peço que parem. É urgente que vocês reconheçam como é gostoso ser branco. Estas coisas que nós ganhamos, sabem, elas não são nossas. Nós não fizemos por merecê-las, e se com a ajuda desses presentes gratuitos nós conseguimos nos tornar pessoas melhores e mais bem sucedidas, é nosso dever devolver aquilo que recebemos sem qualquer merecimento.  

Se você é branco, você é beneficiário do racismo. Você tem mais chances de conseguir um emprego, mais chances de chegar à universidade, menos chance de contrair HIV, mais chance de ser preso ou morto pela polícia. A história do seu povo é contada nos livros como "a História", enquanto a história dos ancestrais negros se apaga, levando consigo a identidade do povo que colocamos pra limpar nossas privadas. Se a sua religião não é de matriz africana, você provavelmente pode exercê-la livremente no Brasil, e não precisa que ONGs e raros políticos lutem pra que seus símbolos e sua mitologia não desapareçam ou sejam "celebradas" com uma estampa étnica na São Paulo fashion week. E não, não se trata só de grana. Se uma família rica e ruiva adotar uma garotinha negra, ela sofrerá bulling na pré escola do Santa Cruz, ela verá seus semelhantes fazendo papel de subalternos na TV e na vida real e os adultos do parquinho pensarão, quando a virem brincando com sua irmã da cor da minha, que ela é a filha do porteiro. Mesmo rica, a menininha de ébano terá mais dificuldades do que se fosse branca. Como foi que nos acostumamos a tamanha atrocidade? 

Faço diariamente o exercício de perceber meus privilégios, e quero convidar meus amigos, de novo, a fazerem este exercício. Sim, nós somos racistas. É uma herança histórica que não vai se desconstruir enquanto a mantivermos trancafiada no porão. A senzala está na rua - quantos negros existem ao seu redor enquanto você lê esse texto? - e já passou da hora de darmos voz e visibilidade para esta população que oprimimos. A cada minuto que você não se preocupa com isso, você, como eu, é racista. 

10 comentários:

  1. Pedro Silveira Carneiro20 de março de 2015 às 12:24

    Deveras, Letu, deveras nós somos racistas. É sempre interessante ver o outro dar voz a suas próprias reflexões. E é sempre triste ver quem está ao nosso redor nos olhando estranho por não chamarmos nossos privilégios de "direitos", frutos do "mérito".
    Recentemente li "O povo brasileiro" do Darcy Ribeiro. Recomendo bastante, ele trata com bastante crueza de como o povo brasileiro foi gestado nos ventres escravos de índias e negras, de como a cultura brasileira vêm da deculturação do povo índio e negro escravizado. É facil entender que por que a maioria das pessoas ( eu inclusive ) têm tanta dificuldade de entrar em contato com a concretude na nossa História (a versão longa, não a resumida pelos vencedores). Mas por outro lado vejo fortemente o quanto é necessário.

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  2. http://arquivo.geledes.org.br/racismo-preconceito/racismo-no-brasil/22492-mendigo-gato-e-mendigo-lixo-a-cor-de-quem-merece-ou-nao-ficar-na-rua

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  3. Concordo totalmente com tudo. Nasci branco de olhos verdes, filho de uma mãe branca e um pai Preto, sim Preto. Carrego esse peso do racismo na alma. Em 20 anos vi vários casos de racismo cair sobre meu pai. Uma vez ele foi parado pela polícia sob suspeita de sequestro por estar com um garoto branco no carro. Somos todos racistas e enquanto não nos preocuparmos e refletirmos sobre isso continuaremos sendo racista.

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    1. Que legal ouvir isso, Hugo. Obrigada pelo depoimento. É ruim ficar sozinha repetindo que "eu sou racista", mas repito porque é obrigação moral.

      Grande abraço!

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  4. Cara Letícia,

    Meu comentário vai como anônimo por não ter paciência para ficar procurando o lugar certo aí embaixo. Mas, meu nome é Fábio e meu e-mail é fr_viana@hotmail.com.

    Quanto sentimento de culpa você carrega por ser racista! E, ao mesmo tempo, quanto orgulho sente por se saber uma abominável racista, enquanto tantos outros brancos o são, sem serem capazes de admitir...

    Se estou entendendo, os que são bonitos devem se enfeiar porque herdaram indevidamente a beleza alheia? Os que são inteligentes, que não fizeram nada para merecerem esta dádiva, devem emburrecer como tributo aos não inteligentes? Os destros aos canhotos; os nascidos na capital aos que nasceram no interior; os que nasceram antes aos que nasceram depois, etc.

    Se o seu critério de igualdade for esse, creio que nem a ficção científica conseguiu resolver o problema. Sério. Há limites técnicos óbvios para esse ser um projeto inviável.

    Da mesma forma que a desigualdade resulta de um processo histórico – como na palestra que você postou, bem poderia ter sido o contrário: os africanos terem sido os colonizadores da Europa... – a solução do problema é também um processo histórico. Talvez seja mais importante para os negros descobrirem seus próprios caminhos do que receberem a solidariedade duvidosa de brancos racistas, com sentimentos de culpa e orgulhosos de sua enorme sensibilidade cultural.

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    1. Oi Fabio, tudo bem?

      Veja, acho importante reconhecer meu próprio racismo porque esse é o passo inicial pra que eu possa reconhecer meus privilégios e abrir mão do que eu der conta de abrir. Você tem razão quando diz que me envaideço disso. Realmente foi doloroso construir isso em mim, e gosto desse meu pedaço.

      Você também tem razão quanto à culpa que me habita - que o diga minha terapeuta! - e o que proponho como solução para a desigualdade social (não confundir com desigualdade). Talvez o texto fique mesmo com um tom de nivelar por baixo, o que é péssimo! Resolvi está questão outro dia em uma conversa com um amigo. Disse-me ele: "a culpa também me habitou por muito tempo, até que entendi que não há nada de errado em eu ter tido as benesses que tive. O problema é outras pessoas não terem tido". Voilá! Pena que esse papo não veio antes do texto, não? Quem sabe não escrevo o volume III?

      Um abraço e obrigada pelo seu comentário!

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    2. Oi Fabio, tudo bem?

      Veja, acho importante reconhecer meu próprio racismo porque esse é o passo inicial pra que eu possa reconhecer meus privilégios e abrir mão do que eu der conta de abrir. Você tem razão quando diz que me envaideço disso. Realmente foi doloroso construir isso em mim, e gosto desse meu pedaço.

      Você também tem razão quanto à culpa que me habita - que o diga minha terapeuta! - e o que proponho como solução para a desigualdade social (não confundir com desigualdade). Talvez o texto fique mesmo com um tom de nivelar por baixo, o que é péssimo! Resolvi está questão outro dia em uma conversa com um amigo. Disse-me ele: "a culpa também me habitou por muito tempo, até que entendi que não há nada de errado em eu ter tido as benesses que tive. O problema é outras pessoas não terem tido". Voilá! Pena que esse papo não veio antes do texto, não? Quem sabe não escrevo o volume III?

      Um abraço e obrigada pelo seu comentário!

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  5. Olá, Letícia!

    Sim, compreendo. Aliás, uma grande qualidade sua é discutir de forma leve! Isso ajuda muito no entendimento entre pessoas com opiniões diferentes.

    Mas, tenho uma observação. Quando você fala que seu foco é a desigualdade social, é o caso de notar que todas as outras desigualdades que listei (feiúra, obesidade, desinteligência, ananismo, etc) são também sociais. Cabem no mesmo raciocínio que você fez para a questão racial. Existe um padrão social dominante; que resulta de uma disputa social e histórica pelo estabelecimento do padrão a ser considerado o legítimo ou desejável. Disso não há como fugir; podemos falar de maior tolerância, etc. Mas não de um padrão "multi multi".
    E sendo assim, o mundo é injusto com os canhotos, com os anões, com os desinteligentes, com os gordos... isso porque o padrão que construímos (de um modo ou outro - de modo opressivo ou simpático... mas de um modo que a maioria participa) privilegia os destros, os de altura mediana, os inteligentes (nesse caso particular, faria algumas ressalvas - e não é ironia da minha parte), os magros, etc.
    Entre outras perguntas, devem estes - destros, medianos, etc - se culparem por viverem dentro desse padrão? Como mudar isso?
    Antes que imagine que minha resposta é "não, não há como mudar"; antecipo-me dizendo que acredito que sim, que seja possível melhorar muito essas percepções sociais de grupos diferentes. Talvez eu e você estejamos fazendo isso nesse momento. Mas não acredito que tais coisas sejam viáveis por meio de decretos ou substituições de um padrão por outro.
    Um abraço!
    Fábio.

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  6. Observei certa tendenciosidade no título do seu texto: "eu sou racista" será um tipo de afirmação convicta da mente preconceituosa que tem? Ou um esclarecimento de que você, entre outros, também se encaixa como racista? Como se qualquer um já não soubesse apenas ao supor aleatoriamente que uma pessoa branca com privilégios desfruta tais com uma despreocupação natural...
    Não quero entrar em termos técnicos (de teor antropológico), de como lhe dar com a situação do racismo atualmente, porque sinto que me distancio da interpretação que você e demais têm sobre o assunto.
    Se já esta me entendendo, considere interpretar esta pergunta: a quem você dirige todo este texto aí que escreveu?
    Respondido isso - de forma retórica - tratemos então de esclarecer uns pontos, já confessando que deixarei transparecer minhas opiniões.
    Em resumo: A culpa é sua.
    E não tem o mínimo louvor em senti-la. É indiferente, dizer ou não. Na verdade, é de prudência condenar, quando se chama preconceituosos, àqueles que carecem informação ao fazer julgamento. Mas você tem toda informação que quiser, o contexto histórico, os discursos que a comunidade negra fez a ainda faz constantemente em prol de sua luta. Então qual é o problema?
    O caso do racista, aquele de que não carece nenhuma informação para interpretar a situação que julga, aquele que visualiza mas não aceita todos os motivos pelo qual os povos sofrem e por isso lutam. Você se encaixa neste? Tem certeza?
    Acho que não.
    Aconselho a não buscar justificativas para situações isoladas, a de: "se ele fosse negro" ou "se eu tivesse uma filha negra". Não tente ser tão extrema. O problema pode ser outro. Chuto com alguma certeza que é outro.
    Veja que dizer "eu sou racista" não tem o mesmo peso de dizer "eu sou negro". Equiparar essas duas coisas é impróprio. Não há relevância alguma em ser racista no ponto de vista da igualdade. O que realmente é importante se trata de deixar de ser racista. E sim, eu li que você tenta incessantemente isso. Mas cuidado pecar fazendo transparecer o esforço em deixar de ser racista (que já ressaltei a possibilidade de não fazer parte do seu caso), com o esforço em ser negro, porque se foi esta sua intenção nas entre linhas, censuro-a. Tal coisa não passa de uma disputa de ostentação martirial. Tenho visto isso eventualmente nos últimos dias, entre negros e brancos, entre homens e mulheres; os homens fazem isso o tempo todo nos movimentos feministas.

    Como uma lagarta, você tem o dever natural de se isolar para eventualmente se tornar uma borboleta.
    E se tratando de conceitos ou não, a cor de sua asa não é importante.

    Procure se cuidar. Obrigado pela atenção. Até!

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  7. Tomar consciência de si é o primeiro passo para atingir uma compreensão mais ampla de tudo que nos envolve. Parabéns pois pela sua tomada de consciência, pois só assim se muda algo no âmbito universal: começando pelo indivíduo, cada um de nós. E textos como esse ajudam a melhorarmos.

    Não devemos nos anularmos pela culpa, que é uma declaração de que nada pode ser mudado, a culpa não admite redenção. Saber que erramos e consertar este erro, esse é o canal; o resto é resto.

    Escreve bem, o Anônimo...; independente de qualquer concordância, ele coloca de maneira clara o próprio pensamento.

    Abraço, querida!

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