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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Estupros perfeitos

Poster do filme Irreversível
por Letícia Bahia


Quem assistiu ao longa francês Irreversível (2002) talvez não durma até hoje. Entre muitas cenas muito violentas, talvez a mais perturbadora sejam os 10 minutos sem cortes em que a personagem da italiana Monica Belucci é estuprada e espancada em uma passagem subterrânea de Paris. Puro terror, a cena representa o pânico maior de 10 entre 10 mulheres. Além da violência hedionda, somos aterrorizadas também pela aleatoriedade do evento. Se o crime de estupro por si só já retira da mulher por completo o controle sobre seu próprio corpo, a ideia de que homens como o criminoso de Irreversível podem estar em qualquer lugar - o que significa que qualquer uma pode ser a próxima vítima - nos arranca a sensação de controle mesmo que jamais sejamos vítimas. No entanto, em cerca de 40% dos estupros de mulheres adultas, o perigo não é o transeunte de capuz que te espera na noite escura. 

Em março de 2014 o IPEA publicou um relatório detalhado sobre os números do estupro no Brasil. Ali ficamos sabendo que quando a vítima é adulta 40% dos agressores não são desconhecidos. Os números referentes às vítimas adolescentes são ainda mais assustadores: 62% dos estupradores não eram um transeunte qualquer, chegando a estarrecedores 87% de criminosos conhecidos das vítimas quando elas são crianças. Se é tão grande - e tão próxima - a possibilidade de sermos violentadas por um amigo, um parente, um colega de trabalho, por quê nos preocupamos tão pouco com isso? 

A tragédia de Liana Friedenbach:
vítima, estupro e estuprador perfeitos 
Muitas feministas já escreveram sobre a vítima perfeita. Assim que se vê livre de seu estuprador, a vítima perfeita se levanta e leva sua dignidade à delegacia mais próxima para reportar o crime. Lágrimas, roupas rasgadas e hematomas nos pulsos e nas virilhas contrastam com seu discurso coerente, encadeado e fluido, e a cada vez que um novo policial lhe faz perguntas ela repete, chorosa e nos menores detalhes, como se debateu e gritou por socorro, apesar do medo da morte. A vítima perfeita é jovem, atraente, não bebe e tem passado impecável. A vítima perfeita nunca estava em uma festa, nunca fez sexo consensual com seu estuprador, nem antes nem depois do crime, e sempre veste roupas comportadas. A vítima perfeita é a exceção, mas o cinema, as novelas e a cobertura sensacionalista dos raros casos que se encaixam no padrão alimentam o mito de que a exceção é a regra. Entre muitas razões, isso é grave porque retira das vítimas reais a credibilidade. Na medida em que a mulher não corresponde ao imaginário coletivo de como deve ser e se comportar a vítima de estupro, passa-se a questionar sua condição de vítima. Assim, é comum que suas tragédias fiquem impunes e quase sempre não reportadas. 

É o caso, inclusive, de questionar os números do IPEA, uma vez que eles se baseiam em dados oficiais sobre estupros reportados. Ora, não é preciso sacada de Sherlock para imaginar que é muito mais fácil denunciar um estuprador desconhecido do que um chefe, um ex-namorado, um padrasto - situações nas quais a vítima ainda terá que dar conta do emprego ou da família brasileira indo pelo ralo. Ou seja: é razoável supor que, fossem reportados todos os estupros, os dados do IPEA apontariam para uma proporção ainda maior de agressores conhecidos das vítimas. Sim, porque se há vítima perfeita, há também o estupro perfeito, aquele que ninguém questiona, que nunca é confuso, nunca envolve contradições. O estupro perfeito tem sangue, algemas, gritos abafados por mordaças. Se tiver aparelhos cirúrgicos com cara de filme de terror, tanto melhor. Camisinha, nem pensar. 

Estuprador perfeito e feminicida: a mídia ama
Há de ser por isso que não nos preocupamos com nossos amigos estupradores: nós só acreditamos em estupradores perfeitos! Se não forem monstros do calibre do Maníaco do Parque ou Mike Tyson (negro, melhor ainda!) eu não acredito. Ocorre que eles existem, essa criaturas reais cujos estupros não cabem na nossa imaginação. E o que é pior: eles podem até ser gente boa. 

Fora do cinema e da TV, há estupradores de todos os tipos. Há aqueles que estupram suas esposas a cada porre e, no dia seguinte, genuinamente se arrependem, mais uma vez. Há os que usam bebida para facilitar seu trabalho (a faculdade de Medicina da USP está cheia destes, apesar de a Universidade se esquivar de enfrentar o problema). Desde 2009, quando a definição de estupro no código penal passou a ser mais abrangente, passamos a ter também aqueles que estupram com as mãos e com a boca - a sua ou a da vítima. Alguns estupradores imperfeitos efetivamente acreditam gostar de suas vítimas, e as vezes suas vítimas também acreditam na farsa de um amor que, de tão grande, não consegue se curvar ao "não" da mulher amada. Há inclusive uma categoria bastante interessante e bastante comum de estupradores imperfeitos: aqueles que não se sabem estupradores. Eles interpretaram o "não" como charme, eles estavam bêbados, eles não viram sentido em parar quando a roupa já estava no chão depois do vinho e das rosas só porque, baixinho, ela disse que não queria mais. É difícil, muito difícil assimilarmos a existência dessa categoria. Posso falar em primeira pessoa, porque conheço um deles. Conheço sua esposa e sua adorável filhota, e relutei em acreditar quando uma amiga, vítima imperfeita, me contou que em uma festa, ambos bêbados, ele a estuprara. Não havia sido um estupro perfeito, como eu podia acreditar? Pois este homem jamais saberá que cometeu um estupro, e eu tenho que dar um jeito de fundir, na mesma pessoa, um estupro e um cara bacana, honesto, progressista. Parece loucura, mas é apenas a complexidade da realidade. 

A ilusão das figuras puramente boas ou puramente más é importante para ensinar o mundo às crianças, mas sustentar essa ilusão na vida adulta exclui um mar de mulheres, vítimas imperfeitas de estupros imperfeitos, que não se encaixam no restrito estereótipo. E não é só isso: falar em estupro como algo necessariamente sanguinolento - e em estupradores como a encarnação do mal - impede um olhar mais cotidiano para as formas de produção da cultura do estupro, tema urgente que abordei neste texto. Sim, porque o mal está sempre longe de nós, os estupradores estão sempre lá longe, junto com os leprosos e os assassinos. Nada temos a ver com isso, não conhecemos estas pessoas e não ajudamos a produzi-las reforçando estereótipos de gênero ou aplaudindo piadas misóginas. 

Nós não vamos frear a epidemia de estupros enquanto não desmistificarmos a figura do estuprador perfeito. Legal a gente ter assistido Disney na primeira infância, mas aqui no mundo real não tem princesa, não tem vilão: é tudo gente, e gente é sempre um caminhão de contradição. Os estupros estão acontecendo no seu ambiente de trabalho, na casa bonita da rua de cima. Só que enquanto a gente vive a ilusão de que esses agressores são sempre loucos escolhidos a dedo por satã, os estupradores imperfeitos estão por aí contando seus abusos em tom de piada.    

* curta Reflexões de uma lagarta no Facebook


quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Papai Noel, Coca-Cola e câncer de pulmão

por Letícia Bahia


Minha geração assistiu à derrocada do cigarro. Acredito que esse produto esteja fadado à extinção, ou a tornar-se passatempo esporádico de um público irrelevante em clubes e tabacarias.

Os malefícios do cigarro não são segredo pra ninguém, e isso não é de hoje. Uma vez perguntei ao meu pai, fumante desde sempre, se ele não sabia que o cigarro fazia mal quando começou a fumar. “Ah, filha”, ele respondeu, “sabia, mas...”. Pois é. As pessoas “sabiam, mas...”. E cada vez mais “sabia-se, mas...”. Quando eu comecei a fumar, lá por volta de 1998, eu tinha total consciência de que o cigarro era nocivo. Mas...

A batalha contra o cigarro só começou a ficar acirrada quando os governos começaram a apontar suas armas contra a indústria tabagista. Antes disso, toda a informação que eu tinha sobre o cigarro – inclua-se nisso os apelos de minha mãe para que meu pai largasse o vício – dissolvia-se naquele glamour que era, aos meus olhos de menina, ser fumante. Como poderia a informação científica competir com o apelo sedutor das pessoas bonitas, magras, livres (¿tem criatura mais livre do que aquele caubói do cigarro, cavalgando em pelo naquelas paisagens de cinema?)?

Em 31 de maio deste ano a indústria tabagista recebeu o golpe fatal com a regulamentação, pelo governo federal, da lei antifumo que proíbe qualquer propaganda, além do fumo em qualquer espaço público com algum tipo de cobertura. A lei entrou em vigor em dezembro, quando até aquele cigarrinho no toldo da banca ou debaixo do ponto de ônibus será proibido. Muito antes disso, já assistimos à proibição do cigarro em ambientes fechados, a inserção ostensiva de avisos sobre os males do cigarro nas embalagens, restrições crescentes à propaganda, extinção de eventos culturais patrocinados por marcas de cigarro como os saudosos Free Jazz Festival e Hollywood Rock. Paralela e obviamente, o número de fumantes caiu drasticamente.

Mesmo assim, muita gente diria que eu e meu pai somos burros por termos começado a fumar. E você que toma Coca-Cola, você é burro? Você não sabe que açúcar em excesso faz mal?

Não, colega, você não é burro. O raciocínio simplista que nos leva a responsabilizar exclusivamente o indivíduo é parte do problema. A criança assiste TV e lá está aquele urso da Coca-Cola, olhar mais terno que o da Madre Teresa de Calcutá. Aquelas famílias de ursos polares só não são mais amadas do que o Papai Noel. Ao contrário do que alguns dizem, o bom velhinho não é criação da marca, mas com seu traje vermelho e branco virou o garoto propaganda mais notável da bebida. Sabidos que são, os publicitários da Coca-Cola botaram até você pra trabalhar de graça pra eles! Quantas vezes na sua linha do tempo apareceu uma lata estampando seu nome ou o nome de um amigo? Que legal que eles pensaram em você! Será que já dá pra chamar essa relação de amizade? 

Inversamente, as informações a respeito dos males causados pelo célebre líquido preto não estão nos papéis de presente do bom velhinho ou nas músicas que cantam aqueles ursos que a gente quer abraçar. O sujeito que compra uma lata de Coca-Cola não entra em contato ali, no ato, com os riscos embutidos na sua escolha – diferentemente do que acontece com o fumante. Ali, no ato, ele apenas "abre a felicidade", como diz uma propaganda da marca. As informações sobre os malefícios estão longe do consumidor, em jornais, artigos científicos, documentários. Quando muito, camufladas em algum canto obscuro da embalagem em fonte tamanho bula. Elas não estampam metade da embalagem, como acontece com o cigarro. Não têm chance na competição desonesta contra os ursos e os natais.

Como podemos esperar, diante deste cenário tão desigual, que as pessoas não sejam “burras”? Como podemos responsabilizar o indivíduo por perder a batalha, se o oponente é tão maior e mais poderoso?

É claro que existe responsabilidade pessoal quando alguém opta por um refrigerante em detrimento de um suco (eu disse suco, não néctar!). Mas é também óbvio – e a experiência com o cigarro demonstra isso – que o consumo moderado só vai ser regra quando se restringir, por meio de leis e políticas públicas, o poder de influência que a indústria de refrigerantes tem hoje. As intervenções possíveis não são novidade: inclusão do assunto alimentação no currículo escolar, incorporando inclusive a cantina como espaço de aprendizagem; proibição de campanhas voltadas ao público infantil – é claro que seu filho vai querer a bebida que o Sherk falou que é legal!; veiculação nas embalagens de informação sobre os riscos, a exemplo do que acontece com o cigarro. Essas são apenas 3 medidas que me ocorreram agora, de cabeça. Há muitos Jamie Oliver por aí desenvolvendo belos projetos de educação alimentar nas escolas, e a discussão sobre se é ético ou não (não, não é) fazer publicidade voltada para as crianças vem ganhando espaço (lembram-se da tartaruga da Bhrama, vetada pelo Ministério Público por dialogar com o público infantil?). É caminhando nesse sentido que podemos esperar bons resultados, e não jogando a culpa no indivíduo ou nos pais que não sabem dizer não.

O CEO da Coca-Cola ganha um dólar a cada vez que você chama um fumante de burro. É que ele não é nada burro e sabe que, se você pensa assim, você é um a menos para pressionar a escola do seu filho a não oferecer refrigerante na merenda e um a mais pra comprar a lata tão legal de Coca-Cola que tem o seu nome, mesmo que você não esteja com sede, e postar uma selfie com ela no seu Facebook. O CEO da Coca-Cola sabe, sobretudo, que pra você o estado não tem nada a ver com esse assunto e que você não vai pressionar seus governantes pra tomar providências que diminuam o faturamento da marca.

Por hora, assim caminha a humanidade. Segue crescendo a epidemia de obesidade no Brasil e no mundo e a juventude continua sendo, como diz a música dos Engenheiros do Havaí, uma banda numa propaganda de refrigerante.


* texto originalmente publicado no Facebook pessoal da autora em 25 de setembro de 2014

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Mamilo Livre


Foram impecáveis os seguranças do MIS em seu entendimento dos códigos de conduta considerados socialmente aceitáveis para homens e para mulheres. Esses códigos normalizam o tratamento diferenciado para homens e mulheres, apesar de contradizerem a Constituição Federal, em que lê-se no inciso I do artigo quinto, que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações". No caso, a regra assimilada e reproduzida pelo museu poderia ser enunciada mais ou menos assim: "homens têm direito de exibir seus mamilos em público. Mulheres não". Claro está que o valor desta regra se sobrepõe ao valor de nossa preciosa Carta Magna. E não sejamos ingênuos: rasgar a Constituição em favor da preservação dos valores que alicerçam o status quo não é novidade, é padrão. A título de exemplo, cito o inciso III do mesmo quinto parágrafo, que coloca todo um sem fim de ações policiais amplamente validadas pela sociedade e pelo governo [de Geraldo Alckmin, de Beto Richa...] na ilegalidade quando afirma: "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante". 

É penoso aceitar, mas nossa Constituição não está valendo mais do que tomates velhos em fim de feira. Dito isso, parece-me que o caminho para a libertação dos mamilos femininos passa por uma análise dos costumes. Mas antes, uma explicação se faz necessária.

Perguntam-me sempre por quê diabos eu encho tanto o saco por conta da proibição do topless feminino. "Você quer tanto mostrar o peito?", emendam. "Por quê tanto incômodo por uma luta tão besta, Letícia?". Minha vontade ou não de tirar a parte de cima do biquini é irrelevante. Não se discute direitos a partir do desejo do indivíduo de exercê-los, para só então validá-los. Você tem direito de ir e vir; se vai exercer esse direito ou se vai passar a vida enclausurado na frente da TV é problema seu. Direitos têm essa característica bonita: eles estão sobre a mesa para quem quiser se servir; é a escolha do indivíduo que dirá se o sujeito irá usufruir agora, daqui a pouco ou nunca. E se ele não estiver disponível sempre, deixa de ser direito. 

Eu mesma defendo alguns direitos dos quais jamais usufruirei. Defendo que homens tenham acesso a procedimentos diagnósticos e a tratamento para câncer de próstata; defendo que negros tenham os mesmos direitos que eu, branca. Você não?

Para falar sobre o desmerecimento da causa, uma postura tão comum quanto precipitada, é preciso compreender o sentido da proibição. Como em 99% dos tabus da humanidade, aqui também esbarramos na sexualidade. Glândulas mamárias todos temos, apesar de as femininas serem, em geral, mas com exceções, maiores do que as dos homens. Ocorre que, por mistério quântico, o tronco masculino costuma ser encarado com a mesma naturalidade de um braço ou uma orelha - partes da anatomia humana que em geral não têm conotação sexual, embora isso possa ocorrer ocasionalmente aqui e ali. Mas os seios não. Seios são sempre eróticos, sempre sensuais. Qual é o homem heterossexual que não se acende diante de um belo par de seios?

Fotos: Jared Polin e Patrick Demarchelier

Este é o retrato de hoje, mas é com imenso prazer que eu digo que não foi sempre assim. Eu já vou contar pra vocês como era, mas antes vamos abrir uma champanha, porque atestar a mudança de um comportamento é atestar, por tabela, sua natureza cultural. Se pode mudar significa que não é traço biológico, não está impresso no DNA humano. Isso é lindo, gente, porque quer dizer que a interdição dos mamilos femininos, na mesma medida em que foi construída, pode ser superada! Emocionei aqui. Retoma, Letícia.

Mary Del Priore, em seu Histórias Íntimas - sexualidade e erotismo na história do Brasil, afirma que a nudez no Brasil colonial não tinha o sentido erótico que conhecemos hoje. Na verdade, a nudez estava associada a índios e escravos, as figuras que valiam ainda menos do que hoje vale nossa Constituição. (Ainda bem que isso ficou pra trás, ufa!). Vamos às palavras da historiadora:

"Viajantes estrangeiros que passavam pelo Brasil, nessa época, ficavam chocados com a nudez dos escravos nas ruas. As poucas blusas que escorregavam pelo ombro, os seios nus, magros e caídos, escorrendo peito abaixo. E, contrariamente aos nossos dias, não havia lugar do corpo feminino menos erótico ou atrativo do que os seios. As chamadas “tetas”, descritas nos tratados médicos como membros esponjosos próximos ao coração, tinham uma só função: produzir alimento. Acreditava-se que o sangue materno cozinhava com o calor do coração, tornando-se branco e leitoso. Os seios jamais eram vistos como sensuais, mas como instrumentos de trabalho de um sexo que devia recolher-se ao pudor e à maternidade. O colo alvo, o pescoço como “torre de marfim” cantado pelos poetas, pouco a pouco começa a cobrir-se. E isso até nas imagens sacras. Estátuas da Virgem Maria em estilo barroco, antes decotadas, ou a própria Virgem do Leite – que no Renascimento expunha os bicos –, desaparecem de oratórios e igrejas." (p.12)

Madonna del latte, Antonio Alegri Correggio (1523)
Uma santa com o mamilo à mostra, por essa eu não esperava! Ali então, assim como aqui, decidiu-se que os seios precisavam ser cobertos. No entanto, a razão para essa conduta - uma quase repulsa! - não poderia estar mais distante da razão pela qual eu hoje não posso ir à praia sem parte de cima. Então era verdade que o mundo dá voltas...

Mas isto apenas não é suficiente para libertar os mamilos. O fato de haver códigos de conduta socialmente construídos não significa, em absoluto, que eles não tenham validade, ainda que limitada a tempos e espaços específicos. Voltemos então aos dias de hoje, em que seios femininos precisam ser escondidos por sua característica inerentemente sexual. Ok, Del Priore mostrou que essa característica não é atemporal, mas é o dado de realidade que se nos apresenta hoje. A pergunta importante, então, é: para quem os seios são sexuais? 

Diante da pergunta o patriarcado já começa a assobiar e fazer cara de paisagem, pressentindo que se aproxima o momento deste texto em que apontaremos sua culpa. Não há como escapar: é para os homens que nossos seios são depósito de desejos. E não me venham falar de lésbicas, que minoria oprimida não constrói status quo (embora possa colaborar na manutenção). O olhar masculino, então, se torna totalitário, e eu, mulher, também passo a compreender os seios como lugar erótico, mesmo não sendo erótico para mim. O lugar simbólico do mamilo feminino - e as condutas que daí derivam - definem-se, então, pelo olhar e pelo desejo do outro. As regras que ditam o que é ou não adequado para um corpo feminino são pautadas pela maneira como os homens o percebem. É tão didático, enquanto expressão do machismo naturalizado, que chega a ser bonito: a metade do mundo que não tem seios define como a metade do mundo que tem seios deve lidar com eles. E é tão eficaz que nós obedecemos sem questionar.

Robyn, Michelle e o Tata Top
Mentira. Nós obedecíamos sem questionar. Graças à pressão de grupos feministas, o Facebook passou a permitir fotos de mastectomias recentes e de amamentação. O movimento Free the Nipple cresce vertiginosamente nos EUA, e em dezembro passado a fundadora do movimento, Lina Esco, lançou um longa metragem de mesmo nome dirigido e estrelado por ela. A dupla americana Robyn e Michelle Lytle criou o Tata Top, o biquini que fantasia nossos mamilos de mamilos. O que falta? Falta tempo. Falta tempo de convivência com seios à mostra, porque ninguém sustenta um olhar sexual infinitamente. Você pode se espantar quando pisar os pés em uma praia de nudismo, mas passe lá o dia todo. Faça um pique nique, caminhe, tome sol e você verá que o pudor não sobrevive. É um paradoxo, mas aqui a cura para a doença e seu agente causal coincidem. Nós precisamos de mais mamilos, de mais seios, de mais tetas, de mais peitos. Nós precisamos compreender que erotizá-los é só uma das coisas que podemos fazer com eles, e que não é saudável fazer isso fora de contextos efetivamente - e consensualmente! - sexuais. E, sobretudo, nós todos, homens e mulheres, precisamos recusar essas definições sobre as mulheres que não partem das próprias mulheres. 

Assine aqui a petição para que o Facebook pare de censurar mamilos femininos.




* curta Reflexões de uma lagarta no Facebook



domingo, 10 de maio de 2015

Dia das mães goela abaixo

por Milena Carasso


Algumas fontes informam que o dia das mães remonta aos antigos gregos. E, ah! Como gostamos dos antigos gregos. Se eles praticavam, eles, tão antes, tão sábios, tão nossos, então é claro, deve haver nisso algo de sublime numa espécie de etimologia cultural que tudo valida. Aparentemente o que os gregos tinham era o hábito de celebrar a deusa Terra na entrada da primavera, fazendo-lhe oferendas.  Mas por um minuto, desçamos do Olimpo. Aqui, na nossa cultura – a minha e a sua – contemporânea e ocidental, o dia das mães começou a ser comemorado nos EUA, em 1914, quando o então presidente do país Thomas Woodrow Wilson proclamou o segundo domingo do mês de maio o dia oficial das mães. No documento por meio do qual oficializa a prática, o presidente coloca como regra que, neste dia, hasteiem-se bandeiras dos EUA em frente a todas as casas e prédios públicos.  Terra, pátria e mãe – um indivíduo, uma mulher – são colocados, de acordo com essas interpretações, como termos de mesmo valor semântico. 

É claro que nem só de origens se faz o homem. E por isso, como surgiu o dia das mães ou qualquer outro evento importa bem menos do que o sentido que esta prática adquiriu e o que representa para as pessoas no mundo de hoje. 

Como educadora, então, o que me interessa problematizar são as comemorações de dia das mães dentro da instituição escolar, por ela organizadas e propostas no arranjo de tarefas pelas quais a escola se responsabiliza. A prática de celebrar oficialmente o dia das mães nas escolas ainda é, e muito, frequente, sobretudo na Educação Infantil e no Ensino Fundamental 1. Felizmente, a meu ver, muitas escolas já abandonaram esta prática, ou nasceram sem ela. No entanto, uma breve pesquisa que fiz, assim que desejei saber mais sobre o assunto, me permitiu verificar que centenas de escolas em São Paulo realizam eventos de dia das mães, como apresentações musicais ou de dança, exposições, etc. Outras tantas não criam um momento tão grandioso, mas promovem ao longo da semana atividades para que os alunos elaborem suas homenagens a suas mães, manufaturando cartões, escrevendo poemas, dedicando tempo e material didático em função da data. Sim, da data. 

No meu entendimento, é preciso repensar o dia das mães nas escolas, por vários motivos. O primeiro argumento é um tanto óbvio e já ponderado em muitas discussões no meio da educação: o que fazer com as crianças que não têm mãe? Aquelas cuja mãe morreu, ou partiu simplesmente decidindo não desempenhar seu papel na maternidade? O que fazer com filhos de casais homoafetivos, em que logicamente a figura da mãe não está dentro do padrão icônico que a data prevê? Especialistas dizem que, nestes casos, as crianças podem passar por algum constrangimento. Mas eu considero constrangimento uma palavra eufêmica e até banal para estas situações. A criança não fica apenas constrangida, imagino. A criança fica colocada a um lugar de exceção, de minoria evidenciada, e todos a sua volta hão de tratá-la com a condescendência reservada a esses casos. 

Há famílias que não têm mãe. Há famílias que têm mais de uma.
É possível argumentar que a criança que se identifica com alguma das situações mencionadas precisa mesmo lidar com isso, encarar sua realidade, elaborar seus conflitos. E que até as outras crianças podem aprender sobre a tal diversidade com ela. Eu duvido. Para que isso acontecesse seria necessário que a escola levasse em conta a individualidade do estudante a um ponto que contradiz a própria escolha de comemorar o dia das mães. Chegamos a um impasse. Para lidar com a morte, o abandono, a diversidade, a boa escola tem outros recursos. Ela deve se apoiar em competências conteudinais, procedimentais e atitudinais trabalhadas ao longo do ano, de muitos anos, por meio das próprias disciplinas que estuda, dos projetos que realiza na escola. E este projeto não pode ser o do dia das mães, porque não há justificativa pedagógica para isso. A escola não é o quintal de casa, ao contrário do que alguns possam pensar. É preciso sim que haja justificativa pedagógica, sem a qual a escola não cumpre sua principal função. 

Há ainda outros motivos para eu não estar de acordo com o dia das mães nas escolas. Se não devemos comemorar o dia das mães porque um currículo escolar não prevê isso, porque essa comemoração não mobiliza conhecimentos, procedimentos e atitudes novas e essenciais, que comemoremos então porque todos comemoram, porque está na televisão, no rádio, nas revistas, e é senso comum que se o faça, não? Não! A escola não é o lugar do senso comum.   Pelo contrário, a escola é o lugar de desconstrução das representações prévias que se tem acerca de algo, para uma nova construção de representações, dinâmica e questionadora. Representações estas que ocupam agora um lugar de reflexão, de pensar junto ao outro, do problematizar. A escola é o lugar mais da ética do que da moral. 

O dia das mães é também a segunda data que mais movimenta dinheiro no comércio, segundo dados da Federação Nacional do Varejo no Brasil. Ora, nada contra presentear alguém. Mas quando uma suposta manifestação de afeto transforma-se em meio de lucro para a indústria de cosméticos, aparelhos eletrônicos e eletro domésticos, que pelo menos a escola retire-se desse esquema. Deixemos à publicidade este papel. Pois repito, a escola não é lugar de apenas viver o mundo tal como ele é, e sim de questioná-lo. E nenhuma escola saudável deve se isentar do questionamento acerca dos temas como o consumismo, o desperdício, a poluição industrial e os outros tantos que, não ignoremos, estão relacionados às datas consagradamente comerciais.

Eu poderia acabar por aqui, mas há um terceiro ponto muitíssimo importante que me parece definitivo para repensarmos a prática de que esse texto trata. É a questão do efeito. Sim. Que efeito produz, a longo prazo, numa realidade, comemorar, ano após ano, o dia das mães? Para uma criança em formação, o efeito é intenso. Como um castelo de cartas, verdades que se constroem hoje, repercutem amanhã. Se a escola inteira se mobiliza, desde que a criança se entende por gente, para um evento desse tipo, embora não haja nenhuma justificativa pedagógica, como já foi colocado, então deve ser porque ser mãe é algo obrigatório na cultura. É necessariamente lindo. É algo que tem que emocionar e fazer parte do destino de toda a mulher. E não adianta dizer a uma criança: “Olha, se você não quiser não precisa ser mãe e está tudo bem. Isso é aceito.” Desculpem-me, mas é muita ingenuidade acreditar que as palavras, nesse contexto, fazem algum sentido. O que faz sentido é a vivência, e ver todos os anos os cartões coloridos, as mães chorando antecipadamente – antes mesmo do evento começar -, constrói a ideia de que à mãe e à maternidade estão reservadas apenas as palavras bonitas. Como então se esperar que, mais tarde, uma criança agora crescida lide bem com sua eventual não vontade de ser mãe, ou mesmo pai? Como esperar que acabem as expressões massacrantes e dolorosas como tia solteirona e mãe solteira?  Como esperar que finalmente um dia se aja com naturalidade diante de um casal homoafetivo? Tem sim a ver, tem tudo a ver. 

Homenagear uma mãe ou qualquer outro ser humano me parece uma ótima atitude. Mas não pode ser obrigatória, naturalizada, automatizada, padronizada. Uma criança deve poder escolher como, se, quando e porque homenagear sua mãe. E uma boa escola há de saber instrumentalizar seus alunos para eventuais expressões de afeto, caso seja este seu desejo. Se não for assim, o que conseguimos é uma criança acostumada, e acostumar-se nada mais é do que se dobrar aos costumes.  Por costume, ela aprenderá que nesta data, é esse o papel a se cumprir, e tantos outros virão cegamente depois, como, por que não, ser mãe. E quanto sofrimento não virá caso seu desejo, mais tarde, seja outro. Porque simplesmente lhe parecerá, a ela e aos outros, que não é nada natural escolher o que ninguém mais escolhe. 

Sem ver sentido naquilo, talvez sem prazer, sem intenção, ela fará o que lhe pedem, os cartões, o presente comprado na companhia de um adulto. E esperará, pacientemente, o mês de outubro e o dia das crianças, porque agora é sua vez! Agora não importa se a relação está conflituosa, se há outras prioridades, se há outros desejos. É o dia de receber presentes de quem mais amamos. De quem mais nos ama. Carinhosos, braços abertos em horário comercial.




segunda-feira, 4 de maio de 2015

Cinefeminismo

por Letícia Bahia



Essa lista é pra a gente aprender. Cada novo filme ou documentário que eu assistir - e gostar! - vem pra cá com uma pequena resenha, trailer e, quando possível, link para o longa na íntegra. Isso quer dizer que essa postagem nunca vai parar de crescer. A lista também pode incluir filmes sobre a luta LGBT, sexualidade e outros temas que dialoguem com o feminismo.

Então, se você assistiu algum filme daqueles imperdíveis - ênfase para documentários, porque o objetivo aqui é aprender - me manda um email, uma mensagem no Face do Lagarta ou sinal de fumaça. E se você já viu algum dos que está na lista, conta aí nos comentários o que achou!

A lista vai ficar mais legal com a ajuda de vocês.

Classificação: bom (!), excelente (!!), tá de sacanagem que você não viu ainda (!!!)
Em ordem alfabética:

After Tiller (2013) !!
Em 2009, George Tiller foi assassinado a tiros dentro de sua igreja. O doutor Tiller era um dos 5 médicos dos EUA a performar abortos depois do terceiro trimestre de gestação. O documentário acompanha a rotina dos 4 profissionais que seguem realizando esse tipo de procedimento. Mas não espere respostas: o que você vai encontrar aqui são histórias duras, pessoas mudando de opiniões, dilemas morais. Um aprofundamento fundamental para quem ainda acredita que a questão do aborto se resume a ser contra ou a favor.


Free the Nipple (2014) !
Lina Esco dirige, estrela e é co-roteirista deste longa, que conta a história de uma ativista pelos direitos das mulheres. Realidade e ficção se confundem: Lina também é ativista, e as dificuldades que enfrentou nas filmagens por colocar mulheres com o torso nu nas ruas de Nova Iorque levaram-na a lançar Free The Nipple como uma campanha, meses antes de finalizar o filme.

torrent do filme para download

The Invisible War (2011) !!
No exército dos EUA, uma mulher tem mais chances de ser sexualmente abusada por um colega do que de ser atingida por fogo inimigo. Indicado ao Oscar de melhor documentário, The Invisible War joga um pouco de luz na tragédia dessas mulheres. Das sequelas às tentativas de acobertamento, esteja preparado para um soco no estômago.

filme na íntegra (legendas em português)

Meninas (2005) !!
A diretora Sandra Werneck acompanhou a gravidez de 3 adolescentes, a mais nova com apenas 13 anos. O documentário é de uma sensibilidade única. Aqui quem conta as histórias são as próprias garotas e suas famílias. A narrativa da diretora é discreta, permitindo ao espectador formular livremente suas opiniões. Mas depois de conhecer Luana, Evelin e Edilene, talvez você prefira calar. 

trailer

Miss Representation (2011) !

A representação da mulher na mídia americana é o tema deste documentário, que intercala trechos de propagandas, filmes e programas de TV com depoimentos de adolescentes e personalidades como a ex-secretária de estado Condoleezza Rice. Dados desconcertantes mostram que a realidade da mulher nos EUA está sofrendo forte influência dos meios de comunicação. O cenário desalentador inclui aumento nos índices de anorexia e depressão, mais nudez feminina na televisão e um diminuto número de mulheres em cargos de liderança.

trailer (em inglês)
filme na íntegra (legendas em português)

Orgasm Inc (2009) !!!
Cirurgias plásticas na vagina, procedimentos invasivos na coluna, remédios, muitos remédios. Você não vai acreditar na quantidade de procedimentos médicos que vem sendo desenvolvidos pela indústria farmacêutica depois que a própria indústria farmacêutica conseguiu autorização do governo americano para tratar mulheres que não gozam como doentes. Com um bom humor surpreendente, Liz Canner passou 9 anos entrevistando especialistas e mulheres que testaram os mais bizarros procedimentos. O resultado é emocionante e certamente vai fazer você reexaminar sua própria relação com sexo e com o seu corpo.

O filme não está disponível gratuitamente, mas está no catálogo do Netflix.

The Times of Harvey Milk (1984) !!!
O longa arrebatou o Oscar de melhor documentário, e anos depois serviu de base para o roteiro de Milk, estrelado por Sean Penn. O ativista Harvey Milk foi o primeiro gay assumido a se eleger nos EUA para um cargo público, em uma São Franciso efervescente, que graças a Milk sediou a primeira parada gay do mundo. Junto com o prefeito da cidade, Harvey foi assassinado dentro da prefeitura por um inimigo político de ambos. Incrivelmente atual, este filme vai fazer você querer levantar do sofá pra mudar o mundo. 


Tomboy  (2011) !!!
Uma história doce e amarga sobre como aprendemos e ensinamos as performances de gênero - e sobre como isso rouba liberdades. Contar mais do que isso seria estragar uma das primeiras surpresas desse longa sublime.

trailer (legendado)
O filme não está disponível gratuitamente, mas está no catálogo do Netflix.

Vessel (2014) !!
Foi trabalhando como ativista do Greenpeace que a médica holandesa Rebecca Gomperts tomou conhecimento das mulheres que morriam mundo afora por complicações decorrentes de abortos inseguros, realizados das maneiras mais insalubres imagináveis, e normalmente em mulheres negras e pobres. Vessel acompanha a trajetória de sua ONG, que realizava abortos seguros em alto mar, e as estratégias de Rebecca para empoderar mulheres em todo o mundo. Nesse documentário você vai descobrir como Rebecca tornou o aborto seguro uma realidade possível para qualquer mulher, em qualquer lugar.


Violência Obstétrica - A Voz das Brasileiras (2012) !
Uma compilação de relatos de mulheres que não tiveram escolha sobre como, onde e quando dariam à luz. De falta de informação a episiotomias não autorizadas, o documentário reúne histórias do país que lidera o ranking mundial de cesarianas. É preciso ter estômago pra assistir.

terça-feira, 31 de março de 2015

O feminicida de Shakespeare

por Letícia Bahia


PRÓLOGO


Em 1603, Shakespeare contou a história de um herói de guerra que morreu por amor. Mas, antes de matar-se, Otelo matou sua esposa. Tudo culpa de Yago que, invejoso das conquistas do grande general, leva-o a crer que sua amada Desdêmona está a trair-lhe com Cassio.

A peça é uma das mais importantes tragédias do dramaturgo inglês, e virou ópera na adaptação de Giuseppe Verdi, que encenou-a pela primeira vez em 1887.

Há duas semanas, fui assistir ao espetáculo do aclamado compositor italiano no Municipal de São Paulo.


***


Otelo, Mouro de Veneza, escuta o que te digo: és um imbecil! Mataste a mulher que amava e ousas dizer que foi por ciúmes! Além de criminoso, és tolo! E tens ainda o desplante de deitar-te ao lado da tua morta para unir-te a ela em suicídio, supondo-te no mais belo retrato do amor romântico! 


Otelo matou Desdêmona por asfixia
Estás arrependido, ó pobre? Descobriste que Desdêmona te era fiel e que, portanto, e apenas portanto, erraste ao matá-la? Sê homem, Otelo, e para de estampar os jornais do meu tempo! Admite tua fraqueza, animal, pois é ela a morada da tua honra. Conversa com tua mulher, conta-lhe que te sentes frágil, que temes ser preterido por Cassio. E se teu ciúme tem razão de ser, vira-te com o monstro que criaste! Desdêmona não te pertence, nem há de perdoá-lo quando a encontrares do outro lado da vida.

Abaixa tua espada, pobre. Não vês que és ridículo? Trata tua Desdêmona com o tamanho que ela tem: o de sua humanidade, de seu saber e do amor que é capaz de sentir. És um fraco, Otelo. Não tens coragem de amar uma criatura que não suponhas menor que tu. Amas com soberba, discursando com tua espada em riste, bradando feitos de guerra, navios, tempestades. Se as artimanhas de Yago semearam desconfiança entre tu e tua esposa, é porque desconheces o amor honesto, e portanto desconheces o amor.

És uma farsa, Otelo, e mataste Desdêmona - pensa que te escondes? - porque ela te revelava a ti mesmo. Desdêmona viva era a criança que escancara a nudez do imperador, arrombando as janelas do teu coração.

Mata-te, homem. Mata-te e para de assombrar-nos. Se recusas a humanidade da tua dor, poupa-nos também da tua arrogância, do teu nariz empinado, das tuas desculpas. Se tu te aceitas assassino mas não consegues acolher tua inerente fragilidade, então mata-te, homem. Mata-te e leva contigo teus herdeiros, que estamos fartas de homens que não são gente.


EPÍLOGO


Se Otelo vivesse no Brasil de hoje, poderia ter sido condenado a cumprir pena de 12 a 30 anos de prisão. Seu crime: homicídio qualificado, sendo o feminicídio a circunstância qualificadora - de acordo com mudança no código penal vigente desde 9 de março deste ano. Mas como Otelo era homem, rico, militar, e como as suspeitas que recaíam sobre Desdêmona poderiam, com a ajuda do excelente advogado que o réu contrataria, convencer o júri de que a vítima era de fato infiel, no Brasil de hoje Otelo certamente cumpriria um ano ou dois - possivelmente em prisão domiciliar.





domingo, 8 de março de 2015

Boas garotas não são estupradas

por Letícia Bahia


No Brasil de 2014 aconteceu um estupro a cada 10 minutos. Quer dizer, na verdade foram mais. É que esse número estarrecedor só dá conta dos estupros reportados. Segundo dados oficiais do Sistema Nacional de Estatísticas em Segurança Pública (Sinesp), foram registradas 40.899 ocorrências do crime. As tantas mulheres que por medo, culpa, vergonha ou pelo motivo que for, não denunciaram a violência sexual de que foram vítimas não estão incluídas nesse número. Portanto, enquanto você estiver lendo esse texto, tenha em mente que muitas mulheres estão sendo estupradas. 

"Mulheres?, Letícia? Por que as feministas falam como se só mulheres fossem estupradas?" 


Todo estupro é uma tragédia. Ao contrário do que insinuou o deputado Jair Bolsonaro, ninguém merece ser estuprado. Faço questão de mencionar a tocante reportagem de Nathalia Ziemkiewicz, que jogou luz sobre a tragédia de Heberson Oliveira. Ele hoje está entre os milhões de brasileiros portadores do HIV. O vírus é a cicatriz invisível e latejante dos estupros que Heberson sofreu na prisão, onde passou dois anos acusado de um crime que não cometeu. Todo o meu sentimento por esse e pelos milhares de Hebersons esquecidos em algum canto de Brasil. Mas eu quero falar sobre mulheres porque é às custas dos nossos corpos que os números do estupro no Brasil são tão alarmantes. Eu quero falar sobre o estupro de mulheres porque nós sabemos o que é viver com medo de ser a próxima.


Em março de 2014 o IPEA publicou um relatório baseado nos dados oficiais do Sinesp. Descobrimos ali que 88,5% das vítimas de estupro são mulheres. Quando nos debruçamos apenas sobre a população adulta o número alcança os impressionantes 97,5% de vítimas do sexo feminino. 


Talvez você não saiba, mas fatalmente conhece alguma destas mulheres. Eu conheço quatro. Em comum, elas tem o fato de que seus agressores nunca foram acusados - pelo menos não por elas. Duas foram abusadas quando criança e por pessoas conhecidas - como 32,2% das crianças abusadas, ainda segundo o IPEA. Uma delas contou sobre o estupro para sua mãe, uma mulher simples que, temendo uma reação violenta do marido, instruiu a filha a manter o ocorrido em segredo. O que fazer quando as mulheres acreditam a tal ponto na própria impotência que uma filha não pode contar com a própria mãe para defendê-la? Ali não se fez nada, e os estupros continuaram a acontecer até que sua idade a tornasse desinteressante para o pedófilo. 


A outra criança eu conheci quando uma mulher de 36 anos sentou-se no meu consultório com um segredo que ela escondera do mundo por 30 anos. Quando ela me contou sobre o abuso sofrido, tão remoto e tão presente, eu pude ver o peso em sua coluna encurvada se desfazer à luz da revelação. Seus olhos ariscos pareciam duvidar de mim quando eu disse que a culpa não era dela. Mas, mesmo incrédula, ela ficou. Assim começaram os meses que passamos juntas, através dos quais ela foi construindo uma nova versão da sua história. A vida toda ela fora culpada, e ali começava finalmente a ser vítima. 


Uma das mulheres adultas engravidou e realizou um aborto. Anos depois, quando aos 7 meses de gestação ela perdeu uma criança que já tinha enxoval, novamente ela se lembrou de que a culpa era dela, sempre dela, embora os médicos lhe dissessem de todas as maneiras possíveis que não havia relação entre o aborto de outrora e o filho perdido. 


Foi também em meu consultório que uma jovem de 19 anos me contou que havia sido estuprada em 3 ocasiões diferentes por 3 homens diferentes. Estivemos juntas por não mais do que um mês. Ela não conseguia fazer o que se faz em terapia, que é olhar para si. Na verdade, ela mal conseguia colocar sua voz para fora dos pulmões. Nos olhos, as lágrimas contidas de quem não acredita ter direito de chorar a própria tragédia. Não sei se por culpa, medo, vergonha ou se por inabilidade minha - nunca sabemos ao certo por quê um paciente abandona a terapia - ela sumiu. Esta mulher eu não pude ajudar. 


A tragédia de Heberson não é maior nem menor do que a destas mulheres. Mas as pilha e mais pilhas de corpos femininos desmanchados por histórias de violência sexual nos obrigam a investigar uma verdade incômoda: os homens estupram muito mais do que as mulheres. Os agressores do sexo masculino representam entre 93% e 97%, diz o IPEA. 


Muita gente procura explicar esse dado desconcertante recorrendo ao argumento fácil e falso de uma suposta natureza masculina. Falam em testosterona, em instinto de perpetuação da espécie. Supõem que o desejo sexual é privilégio dos homens. Devem desconhecer o clitóris, o único órgão que não tem outra função além do prazer sexual. Pior: querem nos fazer crer que, como os bichos, os homens são incapazes de controlar o suposto instinto - mas nem por isso, é claro, autorizam-nos a tratá-los como animais. E neste ponto estamos de acordo: não será concedida aos agressores a indulgência da irracionalidade. Nós os trataremos como adultos capazes de assumir a responsabilidade por escolher cometer um estupro.


Por quê então os homens estupram tão mais do que as mulheres? Se a resposta não está na natureza, somos forçados a buscá-la na cultura. E aqui chegamos à expressão que faz tanta gente correr desse assunto, e que nos obriga a reconhecer que estamos sendo coniventes com um cenário que não poderia levar a outra coisa senão a 40.899 estupros reportados por ano. Esses estupros continuarão acontecendo enquanto não pudermos reconhecer e discutir com responsabilidade esse quadro que só tem um nome: cultura do estupro. 


A temida expressão foi cunhada pelo movimento feminista na década de 70, e designa o conjunto de crenças que normaliza a violência contra a mulher, criando um cenário em que os homens são encorajados a agredirem e as mulheres são culpabilizadas pelos abusos sexuais sofridos. Não, não é coisa do mundo do Papai Noel ou dos unicórnios: a cultura do estupro é tão real quanto o Heberson e as quatro mulheres que conheci. Quando vamos começar a ouvir seus gritos? Já não é hora de começar a pensar como estamos educando nossos homens? Até quando vamos tolerar homens públicos fazendo apologia à violência sofrida por essas quatro mulheres, por Herberson e por mais tanta gente? 

Só o olhar crítico pode nos redimir. Quem se omite e nega a cultura do estupro se torna cúmplice dos agressores de Heberson, das quatro mulheres e de tantas outras. Para fazer parte desta trama sórdida não é preciso ser publicitário, trabalhar no programa do Luciano Huck ou vazar um vídeo privado na internet. Basta fazer nada.


Basta fazer nada diante de propagandas como essa, que colocam a mulher como objeto a serviço do prazer masculino. Reduzidas a "coisas", as mulheres das propagandas de cerveja não tem desejo, não são sujeito. Tal como a garota que foi estuprada 3 vezes, elas não têm voz. Quantas vezes na vida de um adolescente de 15 anos esse tipo de imagem - e esse tipo de ideia - já não foi repetida? 


Durante as tardes de domingo, desde 1989, Fausto Silva pronuncia todo tipo de baboseira enquanto cerca de 20 mulheres com pouca roupa adornam o cenário do programa da família brasileira. Vou repetir: há 26 anos somos coniventes com um programa que usa mulheres como enfeite, como decoração, tal qual eu faço com o vaso da minha sala. Nas tardes de sábado, o privilégio é do apresentador Luciano Huck, que diz que quer ser presidente do Brasil. O que estão registrando as crianças que assistem a esses programas?


Mas a cultura do estupro não é privilégio dos programas populares. Aqui a poderosa Dolce & Gabbana ajuda a desconstruir - é preciso fazer esse trabalho sempre - o mito de que estupro está relacionado à pobreza. Vejam, garotos, é assim que se trata uma mulher. É assim que elas gostam. Na verdade, vocês sabem, elas estão pedindo. Pretas ou brancas, ricas ou pobres, vocês sabem o que elas querem.

A baixaria da grife encontra sua versão menos glamourosa no RedTube, o site pornô que mostra pra quem quiser ver como é que se come uma mulher. Eu já trabalhei com adolescentes e afirmo: é ali que eles aprendem o que é sexo. E ali eles aprendem que sexo envolve mulheres sentindo dor, como sentiu a mulher que abortou o feto que seu agressor plantou-lhe no ventre. Sexo, eles aprendem, envolve puxar pelo cabelo e "mostrar pra ela", envolve enfiar o pênis na garganta mesmo que ela esteja engasgada e lacrimejando. Aula de misoginia pra Mike Tyson nenhum botar defeito. De graça, disponível no smartphone mais perto de você - e do seu filho.

Quando os meninos viram homenzinhos, vão com seus pais ao salão do automóvel, onde a Ferrari vai corroborar a tese da Dolce & Gabbana de que yes, os ricos temos cultura do estupro!. Mesmo que os rapazes jamais possam ter aquele carrão, com sorte eles poderão ter o avião pousado sobre o capô. O que estamos dizendo quando colocamos uma mulher seminua para vender um carro? Bem, todo mundo sabe que mulher vende. Quanto menos roupa, mais dinheiro. E dinheiro - sabemos - é o que realmente importa. Foda-se se eu estou contribuindo para ensinar meninos que mulheres estão aí pra que a gente possa apreciar seus peitos e bundas. É assim que a banda toca, Letícia! Está faltando água no Brasil inteiro, por que é que eu é que tenho que fechar a torneira?

Mas e nós? O que a cultura do estupro está ensinando às mulheres? Nós estamos aprendendo a sentir vergonha da nossa própria nudez, exceto quando ela está a serviço do prazer masculino - nas revistas, na TV, na pornografia. Estamos aprendendo que se nossos maridos querem sexo, nós devemos isso a eles, porque nossos desejos são menos importantes do que os desejos deles. Estamos aprendendo que homens são "assim mesmo", e que temos que nos policiar para não atiçar o desejo adormecido e incontrolável de um estuprador. Estamos aprendendo que a culpa é nossa, que cabe às mulheres não ser estuprada, e não aos homens não estuprar. Estamos aprendendo a chamar a coleguinha de escola de vagabunda por causa da roupa que ela escolheu, e que aprendemos que ela não tem o direito de escolher. Nós estamos aprendendo que nossos corpos não nos pertencem. 


E aí? O que fazer diante de tudo isso?


Não é fácil, mas é possível virar esse jogo. Constatar que o problema é social é reconhecer que ele não está escrito em pedra - e tem muita gente trabalhando pra escrever outra história. Sim, turma, depois desse palavreado todo é hora de respirar com alívio e descobrir que dá trabalho, mas dá pra fazer. A primeira coisa que você pode fazer é conversar com as pessoas sobre a cultura do estupro. É preciso que sejamos implacáveis. Por vezes seremos acusados de moralistas. Foda-se: isso não é nada perto da acusação de cumplicidade nos estupros de Heberson, das quatro mulheres que conheço e de tantas outras. Não existe outro jeito. Não há perspectiva de discussão sobre os direitos das mulheres em Brasília, como deixou claro o presidente da câmara Eduardo Cunha. A televisão não vai mudar. A publicidade não vai mudar. Não espontaneamente. Não sem que a gente perca o medo e comece a discutir a cultura do estupro na TV, nos jornais, nas redes sociais. Quando você vir, aponte. Pelo Heberson, pelas quatro mulheres que você conheceu nesse texto, e pelas milhares que estão esvaziadas por aí. Há muitos documentários e artigos sobre cultura do estupro. Pesquise, mostre aos seus amigos. Não tenha medo de ser chato. Tenha medo de que mais estupros aconteçam. 


Finalizo com o vídeo inspirador de Colin Stokes, que nos ensina como nosso olhar crítico pode ser transformador, sobretudo para as crianças.