segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Estupros perfeitos

Poster do filme Irreversível
por Letícia Bahia


Quem assistiu ao longa francês Irreversível (2002) talvez não durma até hoje. Entre muitas cenas muito violentas, talvez a mais perturbadora sejam os 10 minutos sem cortes em que a personagem da italiana Monica Belucci é estuprada e espancada em uma passagem subterrânea de Paris. Puro terror, a cena representa o pânico maior de 10 entre 10 mulheres. Além da violência hedionda, somos aterrorizadas também pela aleatoriedade do evento. Se o crime de estupro por si só já retira da mulher por completo o controle sobre seu próprio corpo, a ideia de que homens como o criminoso de Irreversível podem estar em qualquer lugar - o que significa que qualquer uma pode ser a próxima vítima - nos arranca a sensação de controle mesmo que jamais sejamos vítimas. No entanto, em cerca de 40% dos estupros de mulheres adultas, o perigo não é o transeunte de capuz que te espera na noite escura. 

Em março de 2014 o IPEA publicou um relatório detalhado sobre os números do estupro no Brasil. Ali ficamos sabendo que quando a vítima é adulta 40% dos agressores não são desconhecidos. Os números referentes às vítimas adolescentes são ainda mais assustadores: 62% dos estupradores não eram um transeunte qualquer, chegando a estarrecedores 87% de criminosos conhecidos das vítimas quando elas são crianças. Se é tão grande - e tão próxima - a possibilidade de sermos violentadas por um amigo, um parente, um colega de trabalho, por quê nos preocupamos tão pouco com isso? 

A tragédia de Liana Friedenbach:
vítima, estupro e estuprador perfeitos 
Muitas feministas já escreveram sobre a vítima perfeita. Assim que se vê livre de seu estuprador, a vítima perfeita se levanta e leva sua dignidade à delegacia mais próxima para reportar o crime. Lágrimas, roupas rasgadas e hematomas nos pulsos e nas virilhas contrastam com seu discurso coerente, encadeado e fluido, e a cada vez que um novo policial lhe faz perguntas ela repete, chorosa e nos menores detalhes, como se debateu e gritou por socorro, apesar do medo da morte. A vítima perfeita é jovem, atraente, não bebe e tem passado impecável. A vítima perfeita nunca estava em uma festa, nunca fez sexo consensual com seu estuprador, nem antes nem depois do crime, e sempre veste roupas comportadas. A vítima perfeita é a exceção, mas o cinema, as novelas e a cobertura sensacionalista dos raros casos que se encaixam no padrão alimentam o mito de que a exceção é a regra. Entre muitas razões, isso é grave porque retira das vítimas reais a credibilidade. Na medida em que a mulher não corresponde ao imaginário coletivo de como deve ser e se comportar a vítima de estupro, passa-se a questionar sua condição de vítima. Assim, é comum que suas tragédias fiquem impunes e quase sempre não reportadas. 

É o caso, inclusive, de questionar os números do IPEA, uma vez que eles se baseiam em dados oficiais sobre estupros reportados. Ora, não é preciso sacada de Sherlock para imaginar que é muito mais fácil denunciar um estuprador desconhecido do que um chefe, um ex-namorado, um padrasto - situações nas quais a vítima ainda terá que dar conta do emprego ou da família brasileira indo pelo ralo. Ou seja: é razoável supor que, fossem reportados todos os estupros, os dados do IPEA apontariam para uma proporção ainda maior de agressores conhecidos das vítimas. Sim, porque se há vítima perfeita, há também o estupro perfeito, aquele que ninguém questiona, que nunca é confuso, nunca envolve contradições. O estupro perfeito tem sangue, algemas, gritos abafados por mordaças. Se tiver aparelhos cirúrgicos com cara de filme de terror, tanto melhor. Camisinha, nem pensar. 

Estuprador perfeito e feminicida: a mídia ama
Há de ser por isso que não nos preocupamos com nossos amigos estupradores: nós só acreditamos em estupradores perfeitos! Se não forem monstros do calibre do Maníaco do Parque ou Mike Tyson (negro, melhor ainda!) eu não acredito. Ocorre que eles existem, essa criaturas reais cujos estupros não cabem na nossa imaginação. E o que é pior: eles podem até ser gente boa. 

Fora do cinema e da TV, há estupradores de todos os tipos. Há aqueles que estupram suas esposas a cada porre e, no dia seguinte, genuinamente se arrependem, mais uma vez. Há os que usam bebida para facilitar seu trabalho (a faculdade de Medicina da USP está cheia destes, apesar de a Universidade se esquivar de enfrentar o problema). Desde 2009, quando a definição de estupro no código penal passou a ser mais abrangente, passamos a ter também aqueles que estupram com as mãos e com a boca - a sua ou a da vítima. Alguns estupradores imperfeitos efetivamente acreditam gostar de suas vítimas, e as vezes suas vítimas também acreditam na farsa de um amor que, de tão grande, não consegue se curvar ao "não" da mulher amada. Há inclusive uma categoria bastante interessante e bastante comum de estupradores imperfeitos: aqueles que não se sabem estupradores. Eles interpretaram o "não" como charme, eles estavam bêbados, eles não viram sentido em parar quando a roupa já estava no chão depois do vinho e das rosas só porque, baixinho, ela disse que não queria mais. É difícil, muito difícil assimilarmos a existência dessa categoria. Posso falar em primeira pessoa, porque conheço um deles. Conheço sua esposa e sua adorável filhota, e relutei em acreditar quando uma amiga, vítima imperfeita, me contou que em uma festa, ambos bêbados, ele a estuprara. Não havia sido um estupro perfeito, como eu podia acreditar? Pois este homem jamais saberá que cometeu um estupro, e eu tenho que dar um jeito de fundir, na mesma pessoa, um estupro e um cara bacana, honesto, progressista. Parece loucura, mas é apenas a complexidade da realidade. 

A ilusão das figuras puramente boas ou puramente más é importante para ensinar o mundo às crianças, mas sustentar essa ilusão na vida adulta exclui um mar de mulheres, vítimas imperfeitas de estupros imperfeitos, que não se encaixam no restrito estereótipo. E não é só isso: falar em estupro como algo necessariamente sanguinolento - e em estupradores como a encarnação do mal - impede um olhar mais cotidiano para as formas de produção da cultura do estupro, tema urgente que abordei neste texto. Sim, porque o mal está sempre longe de nós, os estupradores estão sempre lá longe, junto com os leprosos e os assassinos. Nada temos a ver com isso, não conhecemos estas pessoas e não ajudamos a produzi-las reforçando estereótipos de gênero ou aplaudindo piadas misóginas. 

Nós não vamos frear a epidemia de estupros enquanto não desmistificarmos a figura do estuprador perfeito. Legal a gente ter assistido Disney na primeira infância, mas aqui no mundo real não tem princesa, não tem vilão: é tudo gente, e gente é sempre um caminhão de contradição. Os estupros estão acontecendo no seu ambiente de trabalho, na casa bonita da rua de cima. Só que enquanto a gente vive a ilusão de que esses agressores são sempre loucos escolhidos a dedo por satã, os estupradores imperfeitos estão por aí contando seus abusos em tom de piada.    

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