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terça-feira, 31 de maio de 2016

Boas garotas não são estupradas vol. II

por Letícia Bahia


A situação é epidêmica. De fevereiro a abril deste ano o Ministério da Saúde registrou pouco mais de 91 mil casos de zika. Antes disso, em dezembro passado, a Organização Mundial da Saúde emitiu alerta global sobre a epidemia. Mas, apesar da comprovação da relação entre o vírus na gestação e casos de microcefalia, é outra a epidemia que tira o sono das mulheres. 

Estima-se que 527 mil tentativas ou casos de estupro ocorram todos os anos no Brasil. É bom repetir, pra que se registre a ferro: estima-se que 527 mil tentativas ou casos de estupro ocorram todos os anos no Brasil. A informação é de relatório do IPEA. Siga comigo que vai piorar: O cálculo pra se chegar a esse número leva em conta o número de estupros reportados e uma série de outros dados, analisados e combinados a partir de metodologias estatísticas que estão longe da compreensão da maioria de nós. Pra quem quiser se arriscar, o processo está descrito no link acima. Pra quem quiser se estarrecer, destaco um trecho: 

"essa estatística [527 mil tentativas ou casos de estupro] deve ser olhada com bastante cautela, uma vez que (...) talvez a metodologia empregada (...) não seja a mais adequada para se estimar a prevalência do estupro, podendo servir apenas como uma estimativa para o limite inferior de prevalência do fenômeno no país".

Veja estes objetos
"Limite inferior". Em português claro: o Brasil é palco de pelo menos 527 mil estupros ou tentativas de estupro a cada ano. É bom repetir, pra que se registre a ferro: o Brasil é palco de pelo menos 527 mil estupros ou tentativas de estupro a cada ano. Para aqueles que se chocaram diante dos 30 estupradores da jovem carioca cujo vídeo circula nas redes sociais, apresento este outros 526.970. Já é o suficiente para o alerta de epidemia? Podemos chamar os bombeiros, o exército, pedir ajuda à ONU, cogitar o cancelamento das Olimpíadas? Podemos, finalmente, encarar a questão com a devida seriedade, estampar manchetes dignas de epidemia e deixar de lado o medo de soar politicamente correto ou feminista "demais"? Podemos, finalmente, falar sobre cultura do estupro, esta estrutura social que, em um processo contínuo e recíproco, nos forja e é forjada por nós, e que não poderia resultar em outra coisa além de uma verdadeira epidemia de estupros?

Veja que belos enfeites
Não creio que a maioria de nós esteja pronto para essa urgente tarefa. A maioria de nós não se inclui no pacote "sociedade" de modo que não reconhece como (também) sua a cultura que critica. É marca do brasileiro deixar para lá suas mazelas. Nunca passamos a limpo nosso passado escravocrata. Também continuamos pagando os juros da fatura não quitada da ditadura militar. Por que seria diferente com as mulheres? O contador de estupros aumenta sem parar. A jovem carioca é uma, uma entre centenas de milhares que virou notícia. Talvez alguns de seus agressores sejam presos, mas pouco importa. Já já o frenesi vai passar e as redes sociais vão respirar aliviadas porque ufa!, aquele caso isolado ficou pra trás. É sempre assim, e enquanto for assim, nós, feministas, seguiremos estudando, analisando e sabotando essa estrutura. Para aqueles que querem refletir sobre essa estrutura que chamamos de cultura do estupro, que abram-se os portões. 

Veja sem moderação
A primeira coisa que fazemos quando recebemos a notícia da existência de um bebê é especular sobre o sexo. Antes mesmo de saber o nome, sabemos o sexo. É sempre a primeira pergunta que se faz a alguém que segura um bebê. A divisão homem-mulher, apesar de estar muito longe de dar conta de toda a nossa complexidade, é, ainda hoje, muito fundamental. E para garantir sua continuidade é preciso reafirmar e manter a diferença entre estes dois grupos. Nós (e isso me inclui e te inclui) fazemos isso por meio do que o Feminismo chama de socialização feminina ou masculina. A fábrica da socialização masculina treina os meninos para a agressividade, para o uso do corpo, para a competitividade, para cultivar e exercer o desejo sexual, para revidar, para falar mais alto, para não admitir traição. Já nós, somos treinadas para o recato, para não reagir, para habitar o medo, para sermos belas, para hipervalorizar o desejo do homem que se atrai por nós, para falar baixo, para não conhecer nosso corpo. Isso se dá por meio das brincadeiras, da imitação de comportamentos, de falas corriqueiras. Repare como tratamos meninos e meninas de forma diferente. "Que bonito o seu vestido, Maria!". "Que bacana o seu carrinho, João!". "Maria está parecendo uma boneca!". "Qual o herói favorito do João?". 


Veja que sexy
Os exemplos estão por todos os lados. Eu sei que em um primeiro momento pode parecer besta pensar na Branca de Neve como elemento da cultura do estupro, mas quando você se dá conta do quanto mensagens como essa são repetidas, você começa a ver a imagem que as milhares de peças do quebra-cabeça formam. Branca de Neve (e sua colega Bela Adormecida) é uma entre as tantas mulheres que habitam o universo infantil na forma de uma relação abusiva, na qual ela tem um papel passivo. Pouco ou nada se sabe a respeito do que ela pensa e sente, inclusive (e principalmente) na hora do beijo. Pense nos valores que estão postos nessa história e veja se você consegue pensar em histórias nas quais o homem é quem está nesse lugar. Nenhuma, né?  Não estou afirmando que um garoto vai se tornar um estuprador apenas porque assistiu um pornozinho no RedTube, mas precisamos reconhecer que a repetição de ideias que fundamentam um estupro, embora não sejam suficientes pra formar um estuprador, claramente estão deixando sua marca - em 527 mil casos por ano. 

Vamos pensar na socialização como uma fábrica de brinquedos. Se você submeter todos aos mesmos processos, utilizar os mesmo materiais, pintá-los com as mesmas tintas, eles certamente terão um aspecto final bastante homogêneo, certo? Um ou outro pode dar errado, mas isso não vai fazer você modificar sua linha de produção. Agora imagine que você tem muitos, muitos brinquedos quebrados. Não sei, talvez uns 527 mil por ano. É muito brinquedo quebrado, concorda? Será que não é o caso de verificar a procedência da matéria prima, testar o maquinário da fábrica ou contratar novos engenheiros? Será que não é o caso de pensar o que está acontecendo no processo de fabricação ao invés de tentar consertar tanto brinquedo quebrado?


Veja quanto glamour
A engrenagem dessa fábrica - é preciso que reconheçamos - somos todos nós. A cultura do estupro não é um estupro. É um equívoco se deparar com casos como o da jovem carioca e classificá-lo como cultura do estupro. Aquilo ali se chama crime, e é apenas o sintoma mais cruel de um processo cultural muito maior, corriqueiro e não criminoso (embora repugnante). A cultura do estupro é a repetição e a naturalização de valores que estruturam um estupro. Penso que seja fundamental fazer essa diferença, porque fazer uma leitura a partir do conceito de cultura do estupro (em detrimento de análises isoladas e posteriores a cada caso) é o que vai nos permitir adicionar outros temperos a este caldo cultural e, finalmente, produzir conceitos de feminilidade e masculinidade (enquanto precisarmos deles) que sejam baseados não em hierarquia e submissão, mas na na valorização da diversidade. Quando a gente tiver chegado lá e nosso contador de estupros crescer na velocidade de uma Islândia, aí talvez a gente possa se chocar diante de um caso como o da jovem carioca. Daí talvez a gente possa se perguntar "como?" e "por quê?". Hoje não. Hoje a gente já tem boas pistas de como e porque. Então é o caso de olhar ao redor e apontar tudo que possa ser lido como cultura do estupro. Não para proibir - o estupro já é proibido, lembram? - mas para promover a mudança cultural de que a gente precisa. 

Veja o que elas merecem
Não estou dizendo que não deve haver punição para estupradores. Sou frequentemente questionada a esse respeito. Respondo sempre que sou contra o endurecimento das penas, mas respondo a contragosto, porque perguntar o que devemos fazer com os homens que estupram rouba o tempo e a energia que devemos destinar a descobrir como parar de produzir estupradores. 527 mil estupros anuais é o que se pode chamar, sem metáforas, de linha de produção de estupradores. A internet está infestada de comentários descrevendo as torturas que deveriam ser impostas aos 30 agressores, mas a que isso se presta, se a fábrica segue operando a todo vapor? Nada muda, porque o problema é estrutural. É por isso que precisamos transcender a fase do estômago e pensar com a cabeça, desenvolver estratégias e compreender que não tem milagre: qualquer mudança vai demorar.     

Vejamos o exemplo da cultura do consumismo. Essa é uma expressão já amplamente aceita, e usá-la como ferramenta de combate ao consumo exacerbado significa pensar que o inimigo é uma cultura e não uma fábrica de brinquedos ou de automóveis. Então, o que você vai fazer é conversar com seus filhos sobre isso, levá-los ao mercado e discutir as compras junto com eles, se certificar de que a escola está abordando essas questões, conversar com ele sobre sobre o que ele está absorvendo do que assiste na TV. Você pode até tentar fechar o shopping center da sua cidade, mas esse me parece um caminho pouco inteligente...  


Veja que delícia
Pouco a pouco o Feminismo vem conseguindo algumas mudanças - embora a cultura do estupro, em suas mais diversas dimensões, ainda esteja bem longe do mainstream. A representação da mulher nas histórias infantis vem mudando, as propagandas vem mudando. Falta muito, mas estamos caminhando. 


E bom, se estamos falando de transformar um cultura, você pode começar agora. Não é preciso esperar o próximo estupro midiático. Ele virá, tenhamos certeza, mas você deve se perguntar se quer ser parte do problema ou parte da solução. No caso da segunda opção, prepare-se: você será o chato do Facebook, o radical da família, o mala dos grupos de Whatsapp. Uns me chamam até de petista - eu rio. 

Ser parte do problema é fácil. Basta seguir sua vida e esperar a poeira desse caso baixar. Não demora. O assunto vai desaparecer da mesa do bar e você poderá continuar repetindo suas frases e comportamentos machistas, como todo nós fazemos em algum grau. Fazer parte da cultura do estupro não é muito uma escolha, porque a gente nasceu e cresceu embebido nela. A escolha está em ser um crítico, inclusive de si próprio. 



"Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro se tornar cinzas?"
Friedrich Nietzsche


  





segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Estupros perfeitos

Poster do filme Irreversível
por Letícia Bahia


Quem assistiu ao longa francês Irreversível (2002) talvez não durma até hoje. Entre muitas cenas muito violentas, talvez a mais perturbadora sejam os 10 minutos sem cortes em que a personagem da italiana Monica Belucci é estuprada e espancada em uma passagem subterrânea de Paris. Puro terror, a cena representa o pânico maior de 10 entre 10 mulheres. Além da violência hedionda, somos aterrorizadas também pela aleatoriedade do evento. Se o crime de estupro por si só já retira da mulher por completo o controle sobre seu próprio corpo, a ideia de que homens como o criminoso de Irreversível podem estar em qualquer lugar - o que significa que qualquer uma pode ser a próxima vítima - nos arranca a sensação de controle mesmo que jamais sejamos vítimas. No entanto, em cerca de 40% dos estupros de mulheres adultas, o perigo não é o transeunte de capuz que te espera na noite escura. 

Em março de 2014 o IPEA publicou um relatório detalhado sobre os números do estupro no Brasil. Ali ficamos sabendo que quando a vítima é adulta 40% dos agressores não são desconhecidos. Os números referentes às vítimas adolescentes são ainda mais assustadores: 62% dos estupradores não eram um transeunte qualquer, chegando a estarrecedores 87% de criminosos conhecidos das vítimas quando elas são crianças. Se é tão grande - e tão próxima - a possibilidade de sermos violentadas por um amigo, um parente, um colega de trabalho, por quê nos preocupamos tão pouco com isso? 

A tragédia de Liana Friedenbach:
vítima, estupro e estuprador perfeitos 
Muitas feministas já escreveram sobre a vítima perfeita. Assim que se vê livre de seu estuprador, a vítima perfeita se levanta e leva sua dignidade à delegacia mais próxima para reportar o crime. Lágrimas, roupas rasgadas e hematomas nos pulsos e nas virilhas contrastam com seu discurso coerente, encadeado e fluido, e a cada vez que um novo policial lhe faz perguntas ela repete, chorosa e nos menores detalhes, como se debateu e gritou por socorro, apesar do medo da morte. A vítima perfeita é jovem, atraente, não bebe e tem passado impecável. A vítima perfeita nunca estava em uma festa, nunca fez sexo consensual com seu estuprador, nem antes nem depois do crime, e sempre veste roupas comportadas. A vítima perfeita é a exceção, mas o cinema, as novelas e a cobertura sensacionalista dos raros casos que se encaixam no padrão alimentam o mito de que a exceção é a regra. Entre muitas razões, isso é grave porque retira das vítimas reais a credibilidade. Na medida em que a mulher não corresponde ao imaginário coletivo de como deve ser e se comportar a vítima de estupro, passa-se a questionar sua condição de vítima. Assim, é comum que suas tragédias fiquem impunes e quase sempre não reportadas. 

É o caso, inclusive, de questionar os números do IPEA, uma vez que eles se baseiam em dados oficiais sobre estupros reportados. Ora, não é preciso sacada de Sherlock para imaginar que é muito mais fácil denunciar um estuprador desconhecido do que um chefe, um ex-namorado, um padrasto - situações nas quais a vítima ainda terá que dar conta do emprego ou da família brasileira indo pelo ralo. Ou seja: é razoável supor que, fossem reportados todos os estupros, os dados do IPEA apontariam para uma proporção ainda maior de agressores conhecidos das vítimas. Sim, porque se há vítima perfeita, há também o estupro perfeito, aquele que ninguém questiona, que nunca é confuso, nunca envolve contradições. O estupro perfeito tem sangue, algemas, gritos abafados por mordaças. Se tiver aparelhos cirúrgicos com cara de filme de terror, tanto melhor. Camisinha, nem pensar. 

Estuprador perfeito e feminicida: a mídia ama
Há de ser por isso que não nos preocupamos com nossos amigos estupradores: nós só acreditamos em estupradores perfeitos! Se não forem monstros do calibre do Maníaco do Parque ou Mike Tyson (negro, melhor ainda!) eu não acredito. Ocorre que eles existem, essa criaturas reais cujos estupros não cabem na nossa imaginação. E o que é pior: eles podem até ser gente boa. 

Fora do cinema e da TV, há estupradores de todos os tipos. Há aqueles que estupram suas esposas a cada porre e, no dia seguinte, genuinamente se arrependem, mais uma vez. Há os que usam bebida para facilitar seu trabalho (a faculdade de Medicina da USP está cheia destes, apesar de a Universidade se esquivar de enfrentar o problema). Desde 2009, quando a definição de estupro no código penal passou a ser mais abrangente, passamos a ter também aqueles que estupram com as mãos e com a boca - a sua ou a da vítima. Alguns estupradores imperfeitos efetivamente acreditam gostar de suas vítimas, e as vezes suas vítimas também acreditam na farsa de um amor que, de tão grande, não consegue se curvar ao "não" da mulher amada. Há inclusive uma categoria bastante interessante e bastante comum de estupradores imperfeitos: aqueles que não se sabem estupradores. Eles interpretaram o "não" como charme, eles estavam bêbados, eles não viram sentido em parar quando a roupa já estava no chão depois do vinho e das rosas só porque, baixinho, ela disse que não queria mais. É difícil, muito difícil assimilarmos a existência dessa categoria. Posso falar em primeira pessoa, porque conheço um deles. Conheço sua esposa e sua adorável filhota, e relutei em acreditar quando uma amiga, vítima imperfeita, me contou que em uma festa, ambos bêbados, ele a estuprara. Não havia sido um estupro perfeito, como eu podia acreditar? Pois este homem jamais saberá que cometeu um estupro, e eu tenho que dar um jeito de fundir, na mesma pessoa, um estupro e um cara bacana, honesto, progressista. Parece loucura, mas é apenas a complexidade da realidade. 

A ilusão das figuras puramente boas ou puramente más é importante para ensinar o mundo às crianças, mas sustentar essa ilusão na vida adulta exclui um mar de mulheres, vítimas imperfeitas de estupros imperfeitos, que não se encaixam no restrito estereótipo. E não é só isso: falar em estupro como algo necessariamente sanguinolento - e em estupradores como a encarnação do mal - impede um olhar mais cotidiano para as formas de produção da cultura do estupro, tema urgente que abordei neste texto. Sim, porque o mal está sempre longe de nós, os estupradores estão sempre lá longe, junto com os leprosos e os assassinos. Nada temos a ver com isso, não conhecemos estas pessoas e não ajudamos a produzi-las reforçando estereótipos de gênero ou aplaudindo piadas misóginas. 

Nós não vamos frear a epidemia de estupros enquanto não desmistificarmos a figura do estuprador perfeito. Legal a gente ter assistido Disney na primeira infância, mas aqui no mundo real não tem princesa, não tem vilão: é tudo gente, e gente é sempre um caminhão de contradição. Os estupros estão acontecendo no seu ambiente de trabalho, na casa bonita da rua de cima. Só que enquanto a gente vive a ilusão de que esses agressores são sempre loucos escolhidos a dedo por satã, os estupradores imperfeitos estão por aí contando seus abusos em tom de piada.    

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