por Letícia Bahia
A situação é epidêmica. De fevereiro a abril deste ano o Ministério da Saúde registrou pouco mais de 91 mil casos de zika. Antes disso, em dezembro passado, a Organização Mundial da Saúde emitiu alerta global sobre a epidemia. Mas, apesar da comprovação da relação entre o vírus na gestação e casos de microcefalia, é outra a epidemia que tira o sono das mulheres.
Estima-se que 527 mil tentativas ou casos de estupro ocorram todos os anos no Brasil. É bom repetir, pra que se registre a ferro: estima-se que 527 mil tentativas ou casos de estupro ocorram todos os anos no Brasil. A informação é de relatório do IPEA. Siga comigo que vai piorar: O cálculo pra se chegar a esse número leva em conta o número de estupros reportados e uma série de outros dados, analisados e combinados a partir de metodologias estatísticas que estão longe da compreensão da maioria de nós. Pra quem quiser se arriscar, o processo está descrito no link acima. Pra quem quiser se estarrecer, destaco um trecho:
"essa estatística [527 mil tentativas ou casos de estupro] deve ser olhada com
bastante cautela, uma vez que (...) talvez a metodologia
empregada (...) não seja a mais adequada para se estimar a prevalência do estupro,
podendo servir apenas como uma estimativa para o limite inferior de prevalência do
fenômeno no país".
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Veja estes objetos |
"Limite inferior". Em português claro: o Brasil é palco de pelo menos 527 mil estupros ou tentativas de estupro a cada ano. É bom repetir, pra que se registre a ferro: o Brasil é palco de pelo menos 527 mil estupros ou tentativas de estupro a cada ano. Para aqueles que se chocaram diante dos 30 estupradores da jovem carioca cujo vídeo circula nas redes sociais, apresento este outros 526.970. Já é o suficiente para o alerta de epidemia? Podemos chamar os bombeiros, o exército, pedir ajuda à ONU, cogitar o cancelamento das Olimpíadas? Podemos, finalmente, encarar a questão com a devida seriedade, estampar manchetes dignas de epidemia e deixar de lado o medo de soar politicamente correto ou feminista "demais"? Podemos, finalmente, falar sobre cultura do estupro, esta estrutura social que, em um processo contínuo e recíproco, nos forja e é forjada por nós, e que não poderia resultar em outra coisa além de uma verdadeira epidemia de estupros?
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Veja que belos enfeites |
Não creio que a maioria de nós esteja pronto para essa urgente tarefa. A maioria de nós não se inclui no pacote "sociedade" de modo que não reconhece como (também) sua a cultura que critica. É marca do brasileiro deixar para lá suas mazelas. Nunca passamos a limpo nosso passado escravocrata. Também continuamos pagando os juros da fatura não quitada da ditadura militar. Por que seria diferente com as mulheres? O contador de estupros aumenta sem parar. A jovem carioca é uma, uma entre centenas de milhares que virou notícia. Talvez alguns de seus agressores sejam presos, mas pouco importa. Já já o frenesi vai passar e as redes sociais vão respirar aliviadas porque ufa!, aquele caso isolado ficou pra trás. É sempre assim, e enquanto for assim, nós, feministas, seguiremos estudando, analisando e sabotando essa estrutura. Para aqueles que querem refletir sobre essa estrutura que chamamos de cultura do estupro, que abram-se os portões.
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Veja sem moderação |
A primeira coisa que fazemos quando recebemos a notícia da existência de um bebê é especular sobre o sexo. Antes mesmo de saber o nome, sabemos o sexo. É sempre a primeira pergunta que se faz a alguém que segura um bebê. A divisão homem-mulher, apesar de estar muito longe de dar conta de toda a nossa complexidade, é, ainda hoje, muito fundamental. E para garantir sua continuidade é preciso reafirmar e manter a diferença entre estes dois grupos. Nós (e isso me inclui e te inclui) fazemos isso por meio do que o Feminismo chama de socialização feminina ou masculina. A fábrica da socialização masculina treina os meninos para a agressividade, para o uso do corpo, para a competitividade, para cultivar e exercer o desejo sexual, para revidar, para falar mais alto, para não admitir traição. Já nós, somos treinadas para o recato, para não reagir, para habitar o medo, para sermos belas, para hipervalorizar o desejo do homem que se atrai por nós, para falar baixo, para não conhecer nosso corpo. Isso se dá por meio das brincadeiras, da imitação de comportamentos, de falas corriqueiras. Repare como tratamos meninos e meninas de forma diferente. "Que bonito o seu vestido, Maria!". "Que bacana o seu carrinho, João!". "Maria está parecendo uma boneca!". "Qual o herói favorito do João?".
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Veja que sexy |
Os exemplos estão por todos os lados. Eu sei que em um primeiro momento pode parecer besta pensar na Branca de Neve como elemento da cultura do estupro, mas quando você se dá conta do quanto mensagens como essa são repetidas, você começa a ver a imagem que as milhares de peças do quebra-cabeça formam. Branca de Neve (e sua colega Bela Adormecida) é uma entre as tantas mulheres que habitam o universo infantil na forma de uma relação abusiva, na qual ela tem um papel passivo. Pouco ou nada se sabe a respeito do que ela pensa e sente, inclusive (e principalmente) na hora do beijo. Pense nos valores que estão postos nessa história e veja se você consegue pensar em histórias nas quais o homem é quem está nesse lugar. Nenhuma, né? Não estou afirmando que um garoto vai se tornar um estuprador apenas porque assistiu um pornozinho no RedTube, mas precisamos reconhecer que a repetição de ideias que fundamentam um estupro, embora não sejam suficientes pra formar um estuprador, claramente estão deixando sua marca - em 527 mil casos por ano.
Vamos pensar na socialização como uma fábrica de brinquedos. Se você submeter todos aos mesmos processos, utilizar os mesmo materiais, pintá-los com as mesmas tintas, eles certamente terão um aspecto final bastante homogêneo, certo? Um ou outro pode dar errado, mas isso não vai fazer você modificar sua linha de produção. Agora imagine que você tem muitos, muitos brinquedos quebrados. Não sei, talvez uns 527 mil por ano. É muito brinquedo quebrado, concorda? Será que não é o caso de verificar a procedência da matéria prima, testar o maquinário da fábrica ou contratar novos engenheiros? Será que não é o caso de pensar o que está acontecendo no processo de fabricação ao invés de tentar consertar tanto brinquedo quebrado?
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Veja quanto glamour |
A engrenagem dessa fábrica - é preciso que reconheçamos - somos todos nós. A cultura do estupro não é um estupro. É um equívoco se deparar com casos como o da jovem carioca e classificá-lo como cultura do estupro. Aquilo ali se chama crime, e é apenas o sintoma mais cruel de um processo cultural muito maior, corriqueiro e não criminoso (embora repugnante). A cultura do estupro é a repetição e a naturalização de valores que estruturam um estupro. Penso que seja fundamental fazer essa diferença, porque fazer uma leitura a partir do conceito de cultura do estupro (em detrimento de análises isoladas e posteriores a cada caso) é o que vai nos permitir adicionar outros temperos a este caldo cultural e, finalmente, produzir conceitos de feminilidade e masculinidade (enquanto precisarmos deles) que sejam baseados não em hierarquia e submissão, mas na na valorização da diversidade. Quando a gente tiver chegado lá e nosso contador de estupros crescer na velocidade de uma Islândia, aí talvez a gente possa se chocar diante de um caso como o da jovem carioca. Daí talvez a gente possa se perguntar "como?" e "por quê?". Hoje não. Hoje a gente já tem boas pistas de como e porque. Então é o caso de olhar ao redor e apontar tudo que possa ser lido como cultura do estupro. Não para proibir - o estupro já é proibido, lembram? - mas para promover a mudança cultural de que a gente precisa.
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Veja o que elas merecem |
Não estou dizendo que não deve haver punição para estupradores. Sou frequentemente questionada a esse respeito. Respondo sempre que sou contra o endurecimento das penas, mas respondo a contragosto, porque perguntar o que devemos fazer com os homens que estupram rouba o tempo e a energia que devemos destinar a descobrir como parar de produzir estupradores. 527 mil estupros anuais é o que se pode chamar, sem metáforas, de linha de produção de estupradores. A internet está infestada de comentários descrevendo as torturas que deveriam ser impostas aos 30 agressores, mas a que isso se presta, se a fábrica segue operando a todo vapor? Nada muda, porque o problema é estrutural. É por isso que precisamos transcender a fase do estômago e pensar com a cabeça, desenvolver estratégias e compreender que não tem milagre: qualquer mudança vai demorar.
Vejamos o exemplo da cultura do consumismo. Essa é uma expressão já amplamente aceita, e usá-la como ferramenta de combate ao consumo exacerbado significa pensar que o inimigo é uma cultura e não uma fábrica de brinquedos ou de automóveis. Então, o que você vai fazer é conversar com seus filhos sobre isso, levá-los ao mercado e discutir as compras junto com eles, se certificar de que a escola está abordando essas questões, conversar com ele sobre sobre o que ele está absorvendo do que assiste na TV. Você pode até tentar fechar o shopping center da sua cidade, mas esse me parece um caminho pouco inteligente...
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Veja que delícia |
Pouco a pouco o Feminismo vem conseguindo algumas mudanças - embora a cultura do estupro, em suas mais diversas dimensões, ainda esteja bem longe do mainstream. A representação da mulher nas histórias infantis vem mudando, as propagandas vem mudando. Falta muito, mas estamos caminhando.
E bom, se estamos falando de transformar um cultura, você pode começar agora. Não é preciso esperar o próximo estupro midiático. Ele virá, tenhamos certeza, mas você deve se perguntar se quer ser parte do problema ou parte da solução. No caso da segunda opção, prepare-se: você será o chato do Facebook, o radical da família, o mala dos grupos de Whatsapp. Uns me chamam até de petista - eu rio.
Ser parte do problema é fácil. Basta seguir sua vida e esperar a poeira desse caso baixar. Não demora. O assunto vai desaparecer da mesa do bar e você poderá continuar repetindo suas frases e comportamentos machistas, como todo nós fazemos em algum grau. Fazer parte da cultura do estupro não é muito uma escolha, porque a gente nasceu e cresceu embebido nela. A escolha está em ser um crítico, inclusive de si próprio.
"Você tem que estar preparado para se queimar em sua própria chama: como se renovar sem primeiro se tornar cinzas?"
Friedrich Nietzsche
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