por Letícia Bahia
(English version)
Em 5 de fevereiro de 2014 a modelo Priscila Navarro Bueno foi repreendida por seguranças do Museu da Imagem e do Som (MIS) por amamentar sua filha Julieta, à época com 7 meses, em público. O caso repercutiu nas redes sociais e, no dia 16, cerca de 40 famílias voltaram ao MIS para promover a amamentação pública e coletiva de seus bebês. Desta vez, não houve repressão do Museu, no episódio que ficou conhecido como mamaço.
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Em 5 de fevereiro de 2014 a modelo Priscila Navarro Bueno foi repreendida por seguranças do Museu da Imagem e do Som (MIS) por amamentar sua filha Julieta, à época com 7 meses, em público. O caso repercutiu nas redes sociais e, no dia 16, cerca de 40 famílias voltaram ao MIS para promover a amamentação pública e coletiva de seus bebês. Desta vez, não houve repressão do Museu, no episódio que ficou conhecido como mamaço.
Foram impecáveis os seguranças do MIS em seu entendimento dos códigos de conduta considerados socialmente aceitáveis para homens e para mulheres. Esses códigos normalizam o tratamento diferenciado para homens e mulheres, apesar de contradizerem a Constituição Federal, em que lê-se no inciso I do artigo quinto, que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações". No caso, a regra assimilada e reproduzida pelo museu poderia ser enunciada mais ou menos assim: "homens têm direito de exibir seus mamilos em público. Mulheres não". Claro está que o valor desta regra se sobrepõe ao valor de nossa preciosa Carta Magna. E não sejamos ingênuos: rasgar a Constituição em favor da preservação dos valores que alicerçam o status quo não é novidade, é padrão. A título de exemplo, cito o inciso III do mesmo quinto parágrafo, que coloca todo um sem fim de ações policiais amplamente validadas pela sociedade e pelo governo [de Geraldo Alckmin, de Beto Richa...] na ilegalidade quando afirma: "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante".
É penoso aceitar, mas nossa Constituição não está valendo mais do que tomates velhos em fim de feira. Dito isso, parece-me que o caminho para a libertação dos mamilos femininos passa por uma análise dos costumes. Mas antes, uma explicação se faz necessária.
É penoso aceitar, mas nossa Constituição não está valendo mais do que tomates velhos em fim de feira. Dito isso, parece-me que o caminho para a libertação dos mamilos femininos passa por uma análise dos costumes. Mas antes, uma explicação se faz necessária.
Perguntam-me sempre por quê diabos eu encho tanto o saco por conta da proibição do topless feminino. "Você quer tanto mostrar o peito?", emendam. "Por quê tanto incômodo por uma luta tão besta, Letícia?". Minha vontade ou não de tirar a parte de cima do biquini é irrelevante. Não se discute direitos a partir do desejo do indivíduo de exercê-los, para só então validá-los. Você tem direito de ir e vir; se vai exercer esse direito ou se vai passar a vida enclausurado na frente da TV é problema seu. Direitos têm essa característica bonita: eles estão sobre a mesa para quem quiser se servir; é a escolha do indivíduo que dirá se o sujeito irá usufruir agora, daqui a pouco ou nunca. E se ele não estiver disponível sempre, deixa de ser direito.
Eu mesma defendo alguns direitos dos quais jamais usufruirei. Defendo que homens tenham acesso a procedimentos diagnósticos e a tratamento para câncer de próstata; defendo que negros tenham os mesmos direitos que eu, branca. Você não?
Para falar sobre o desmerecimento da causa, uma postura tão comum quanto precipitada, é preciso compreender o sentido da proibição. Como em 99% dos tabus da humanidade, aqui também esbarramos na sexualidade. Glândulas mamárias todos temos, apesar de as femininas serem, em geral, mas com exceções, maiores do que as dos homens. Ocorre que, por mistério quântico, o tronco masculino costuma ser encarado com a mesma naturalidade de um braço ou uma orelha - partes da anatomia humana que em geral não têm conotação sexual, embora isso possa ocorrer ocasionalmente aqui e ali. Mas os seios não. Seios são sempre eróticos, sempre sensuais. Qual é o homem heterossexual que não se acende diante de um belo par de seios?
Este é o retrato de hoje, mas é com imenso prazer que eu digo que não foi sempre assim. Eu já vou contar pra vocês como era, mas antes vamos abrir uma champanha, porque atestar a mudança de um comportamento é atestar, por tabela, sua natureza cultural. Se pode mudar significa que não é traço biológico, não está impresso no DNA humano. Isso é lindo, gente, porque quer dizer que a interdição dos mamilos femininos, na mesma medida em que foi construída, pode ser superada! Emocionei aqui. Retoma, Letícia.
Mary Del Priore, em seu Histórias Íntimas - sexualidade e erotismo na história do Brasil, afirma que a nudez no Brasil colonial não tinha o sentido erótico que conhecemos hoje. Na verdade, a nudez estava associada a índios e escravos, as figuras que valiam ainda menos do que hoje vale nossa Constituição. (Ainda bem que isso ficou pra trás, ufa!). Vamos às palavras da historiadora:
"Viajantes estrangeiros que passavam pelo Brasil, nessa época, ficavam chocados com a nudez dos escravos nas ruas. As poucas blusas que escorregavam pelo ombro, os seios nus, magros e caídos, escorrendo peito abaixo. E, contrariamente aos nossos dias, não havia lugar do corpo feminino menos erótico ou atrativo do que os seios. As chamadas “tetas”, descritas nos tratados médicos como membros esponjosos próximos ao coração, tinham uma só função: produzir alimento. Acreditava-se que o sangue materno cozinhava com o calor do coração, tornando-se branco e leitoso. Os seios jamais eram vistos como sensuais, mas como instrumentos de trabalho de um sexo que devia recolher-se ao pudor e à maternidade. O colo alvo, o pescoço como “torre de marfim” cantado pelos poetas, pouco a pouco começa a cobrir-se. E isso até nas imagens sacras. Estátuas da Virgem Maria em estilo barroco, antes decotadas, ou a própria Virgem do Leite – que no Renascimento expunha os bicos –, desaparecem de oratórios e igrejas." (p.12)
Madonna del latte, Antonio Alegri Correggio (1523) |
Mas isto apenas não é suficiente para libertar os mamilos. O fato de haver códigos de conduta socialmente construídos não significa, em absoluto, que eles não tenham validade, ainda que limitada a tempos e espaços específicos. Voltemos então aos dias de hoje, em que seios femininos precisam ser escondidos por sua característica inerentemente sexual. Ok, Del Priore mostrou que essa característica não é atemporal, mas é o dado de realidade que se nos apresenta hoje. A pergunta importante, então, é: para quem os seios são sexuais?
Diante da pergunta o patriarcado já começa a assobiar e fazer cara de paisagem, pressentindo que se aproxima o momento deste texto em que apontaremos sua culpa. Não há como escapar: é para os homens que nossos seios são depósito de desejos. E não me venham falar de lésbicas, que minoria oprimida não constrói status quo (embora possa colaborar na manutenção). O olhar masculino, então, se torna totalitário, e eu, mulher, também passo a compreender os seios como lugar erótico, mesmo não sendo erótico para mim. O lugar simbólico do mamilo feminino - e as condutas que daí derivam - definem-se, então, pelo olhar e pelo desejo do outro. As regras que ditam o que é ou não adequado para um corpo feminino são pautadas pela maneira como os homens o percebem. É tão didático, enquanto expressão do machismo naturalizado, que chega a ser bonito: a metade do mundo que não tem seios define como a metade do mundo que tem seios deve lidar com eles. E é tão eficaz que nós obedecemos sem questionar.
Robyn, Michelle e o Tata Top |
Assine aqui a petição para que o Facebook pare de censurar mamilos femininos.
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