terça-feira, 31 de março de 2015

O feminicida de Shakespeare

por Letícia Bahia


PRÓLOGO


Em 1603, Shakespeare contou a história de um herói de guerra que morreu por amor. Mas, antes de matar-se, Otelo matou sua esposa. Tudo culpa de Yago que, invejoso das conquistas do grande general, leva-o a crer que sua amada Desdêmona está a trair-lhe com Cassio.

A peça é uma das mais importantes tragédias do dramaturgo inglês, e virou ópera na adaptação de Giuseppe Verdi, que encenou-a pela primeira vez em 1887.

Há duas semanas, fui assistir ao espetáculo do aclamado compositor italiano no Municipal de São Paulo.


***


Otelo, Mouro de Veneza, escuta o que te digo: és um imbecil! Mataste a mulher que amava e ousas dizer que foi por ciúmes! Além de criminoso, és tolo! E tens ainda o desplante de deitar-te ao lado da tua morta para unir-te a ela em suicídio, supondo-te no mais belo retrato do amor romântico! 


Otelo matou Desdêmona por asfixia
Estás arrependido, ó pobre? Descobriste que Desdêmona te era fiel e que, portanto, e apenas portanto, erraste ao matá-la? Sê homem, Otelo, e para de estampar os jornais do meu tempo! Admite tua fraqueza, animal, pois é ela a morada da tua honra. Conversa com tua mulher, conta-lhe que te sentes frágil, que temes ser preterido por Cassio. E se teu ciúme tem razão de ser, vira-te com o monstro que criaste! Desdêmona não te pertence, nem há de perdoá-lo quando a encontrares do outro lado da vida.

Abaixa tua espada, pobre. Não vês que és ridículo? Trata tua Desdêmona com o tamanho que ela tem: o de sua humanidade, de seu saber e do amor que é capaz de sentir. És um fraco, Otelo. Não tens coragem de amar uma criatura que não suponhas menor que tu. Amas com soberba, discursando com tua espada em riste, bradando feitos de guerra, navios, tempestades. Se as artimanhas de Yago semearam desconfiança entre tu e tua esposa, é porque desconheces o amor honesto, e portanto desconheces o amor.

És uma farsa, Otelo, e mataste Desdêmona - pensa que te escondes? - porque ela te revelava a ti mesmo. Desdêmona viva era a criança que escancara a nudez do imperador, arrombando as janelas do teu coração.

Mata-te, homem. Mata-te e para de assombrar-nos. Se recusas a humanidade da tua dor, poupa-nos também da tua arrogância, do teu nariz empinado, das tuas desculpas. Se tu te aceitas assassino mas não consegues acolher tua inerente fragilidade, então mata-te, homem. Mata-te e leva contigo teus herdeiros, que estamos fartas de homens que não são gente.


EPÍLOGO


Se Otelo vivesse no Brasil de hoje, poderia ter sido condenado a cumprir pena de 12 a 30 anos de prisão. Seu crime: homicídio qualificado, sendo o feminicídio a circunstância qualificadora - de acordo com mudança no código penal vigente desde 9 de março deste ano. Mas como Otelo era homem, rico, militar, e como as suspeitas que recaíam sobre Desdêmona poderiam, com a ajuda do excelente advogado que o réu contrataria, convencer o júri de que a vítima era de fato infiel, no Brasil de hoje Otelo certamente cumpriria um ano ou dois - possivelmente em prisão domiciliar.





3 comentários:

  1. Gostei muito da ponte que fez, provavelmente deve ter rendido um texto muito maior, deve ter ficado lindo <3
    E acho que não seria tão pouco tempo a pena de Otelo, visto que é negro, e no Brasil nessas circunstâncias muito mudaria a situação! Também na obra a questão da raça é evidenciada, o fato de Otelo ser menosprezado pela família de Desdêmona por não ser branco, e isto também fazer parte da ferida em seu orgulho, e sua tentativa diária de provar sua eficiência ''como homem''. No contexto histórico, a morte era vista de forma muito diferente, o assassinato a outrem, e especialmente a mulher se levado em consideração uma possível traição. Absurdos que na dramaturgia ficam poéticos, mas são absurdos, só absurdos. Pff, seculos depois, uma mulher ainda perdia a guarda de filhos e sua renda comum se comprovada uma POSSIVEL traição. E absurdos continuam acontecendo por relativizarem tantas violências vividas pelas mulheres cis e trans!

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  2. Feminicídio é sexista!
    Assim como homens matam mulheres por ciúmes, mulheres também matam homens por ciúmes.
    O tratamento deveria ser o mesmo para o mesmo tipo de crime.

    Ass. Beatriz

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  3. Não quero tratamento diferenciado. Não quero lei machista que me considera frágil, inferior. Mulheres são iguais aos homens!

    Ass. Beatriz

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