terça-feira, 7 de abril de 2015

Machismo na sala de aula

por Letícia Bahia



Ainda estávamos no mês da mulher quando eu conheci G. Nos descobrimos em um grupo feminista no Facebook onde eu me interessei pela história que ela, indignada, contava. Situações que reproduzem a lógica do patriarcado doem no peito de quem conhece e estuda esse tema, mas quando machismo e educação se misturam no mesmo episódio, o sangue ferve e precisa transbordar para fora do corpo. No meu caso, transbordo em palavras.

G faz cursinho pré vestibular na unidade Tamandaré do Anglo, onde cada turma tem mais ou menos 200 alunos. Se prender a atenção desses 400 olhinhos já deve ser difícil, fazer isso quando se tenta ensinar a matéria maçante da FUVEST deve requerer habilidades circenses. Para ser professor do Anglo não basta ser bom: tem que saber contar piada, tem que ter jogo de cintura, tem que gostar de palco. Só que o professor de Física de G resolveu seduzir sua platéia com um número machista.

Harley Sato perguntou aos seus 200 alunos quem poderia ajudá-lo em uma demonstração, e uma colega de G foi apontada pela turma como a "voluntária". Enquanto ela caminhava até a frente da sala, vários garotos riam e mexiam com ela, mais ou menos como acontece com qualquer mulher que ousa passar em frente a algum boteco repleto de homens no fim do dia. Esta situação, dentro de um contexto de sala de aula, já é por si só inaceitável, mas está longe de ser o ponto mais crítico do que G me contou.

Eu não sei o que o professor estava ensinando - e não importa - mas na sequência ele pediu que a garota caminhasse lentamente em sua direção enquanto ele fazia o mesmo. De acordo com o relato de G, a aproximação só parou quando sua colega e o professor estavam face a face, como acontece no instante que antecede um beijo na boca. Enquanto a turma se desdobrava em risadas, como sempre fazem adolescentes em situações de cunho erótico, Sato pediu que a garota virasse de costas para ele. Ali, quase colado nas costas da moça, diante de uma plateia de 200 adolescentes, ele proferiu a cereja do sundae: "para onde está apontando o meu vetor?". Para quem não sabe, vetores são graficamente representados por uma seta. 

Tudo isso é tão errado de tantas maneiras que fica difícil saber por onde começar. Mas vamos lá.

Eu honestamente não acredito que o professor de G, que ficou escandalizada com a situação, tenha tido qualquer intenção de ofender, objetificar ou ridicularizar as mulheres, ali representadas pela aluna "voluntária". Tampouco acredito que tivesse intenção de fazer qualquer coisa com seu "vetor". Aliás, acho mesmo que quando ele ler este texto (farei de tudo pra que isso aconteça) irá pensar que sou uma psicóloga chata, moralista e que não sabe brincar, e que ele é um excelente professor. Como a maioria, o professor deve desconhecer a situação da mulher no Brasil e no mundo, e se algum dia ouviu falar em Feminismo ou emancipação da mulher, deve achar que isso nada tem a ver com ele. 

E quem é que pode culpá-lo? Como todos nós, ele deve ter passado a vida vendo mulheres servindo como brinquedinhos para divertir garotos. Pode ser que algum professor na universidade de Física tenha finalmente conseguido lhe ensinar mecânica quântica graças a alguma piadinha misógina com alguma colega de classe, provavelmente a única mulher na turma. Ou talvez tenham sido suficientes os comerciais de cerveja - e margarina e peru de Natal e creme de cabelo e desodorante e lingerie e tudo - onde somos sempre retratadas como corpos sem conteúdo, cujo valor só pode advir da aparência. Sim, eu poderia ser indulgente com o senhor, professor Sato, mas isso seria subestimá-lo. Sendo o senhor um cientista - e não um corpo sem conteúdo - convido-o a fazer o que os cientistas fazem de melhor: perguntas. Como estamos adentrando um território de conhecimento que já habito, permito-me algumas sugestões iniciais:

1. Se o senhor tivesse chamado um garoto para protagonizar a cena, a reação da turma teria sido a mesma? Por quê? 

2. No que diz respeito aos papéis de gênero, quais conceitos foram reproduzidos na sua atitude, ainda que não intencionalmente?

3. Considerando as posições ocupadas por homens e mulheres no Brasil de hoje no que diz respeito a espaços de poder, o senhor enxerga algum paralelo com a situação que promoveu em sala?

(Esta próxima é a mais importante).

4. Qual seria a possibilidade de a sua aluna, a qualquer altura do episódio, dizer-se incomodada e pedir para voltar ao seu lugar, considerando a fragilidade histórica e social de seu papel de mulher frente a um homem e de aluna frente a um professor ovacionado pela turma?

Quero lembrá-lo, professor, da importância do seu papel de educador e do peso que suas palavras têm para aqueles que enfileiram-se para assisti-lo. Não subestime seu poder, mesmo que a displicência de alguns alunos convide-o a fazer o contrário, e não se esqueça de que o conteúdo de suas aulas é apenas uma das coisas que seus alunos aprenderão com o senhor. 

Gostaria também de convidar para esta conversa os senhores Thales e Arruda, coordenadores da unidade Tamandaré. Se vocês acreditam que o papel dessa instituição é empurrar conteúdo na cabeça dos jovens para tão somente alcançar uma cifra alta de aprovações no vestibular, vocês realmente são, como dizem no site, "fera de verdade", e nós devemos nos preocupar com vocês. Além do caso do professor Sato, G também me contou sobre episódios de homofobia envolvendo professores e alunos, o que é inadmissível, sobretudo para quem atua na área da educação. 

Estas questões precisam ser encaradas de frente. Há um sem fim de profissionais com farto arsenal para ajudá-los. De minha parte, quero dizer que estou inteiramente à disposição. Vocês têm a minha garantia de que, mesmo que o mundo me trate como um corpo, mesmo que minhas competências intelectuais sejam frequentemente questionadas por causa do meu gênero, mesmo que eu seja subestimada por ser mulher, eu sempre os tratarei com o respeito de quem acredita que, em essência, somos iguais.   ~

***

Para não comprometer sua relação com os colegas e com a instituição de ensino, G preferiu não se identificar. Mas ela me pediu para transmitir o seguinte recado:

E sobre o texto, escreve com um nome fictício mesmo, eu prefiro. E deixa um recado lá, meu. Que eu gostaria muito de colocar o meu nome, de por a cara pra bater, assim como meus pais e meus amigos me aconselharam. Mas infelizmente, o machismo ainda é muito grande na nossa sociedade e eu, infelizmente, não estou pronta pra enfrentá-lo com unhas e dentes. Mas que cada um deveria fazer o exercício diário de se por no lugar do outro. De se por no lugar da vítima. Altruísmo é a palavra certa. Se cada um fizer isso, o mundo estará bem melhor daqui uns anos, para os nossos filhos. E eu, sonho com o dia em que o machismo acabe e que eu pare de me despersonificar. Que eu possa, um dia, colocar o meu nome em cada situação dessa que eu passar, que eu não seja repreendida por isso. E que cada atitude dessa seja desconstruída.





Um comentário:

  1. Cara Letícia,

    Escrevo este texto com dificuldade, pois é difícil ler o que você escreveu, ainda mais quando se trata da minha própria pessoa sendo agente que estimula o machismo. Eu acho que há detalhes no texto que não ocorreram como descrito, mas em geral, grosso modo, que ao meu ver é o mais importante, ele beira a perfeição.
    Hoje em dia eu sou grato por você ter escrito o texto. Confesso que, na época, quando li, fiquei muito incomodado. Não que eu não eu não esteja incomodado agora, mas é um outro tipo de incômodo. Meu incômodo, hoje, é produto de uma reflexão, não de um ego ferido.
    Gostaria de agradecer também por você tentar se colocar no meu lugar, imerso em um mundo machista.
    Depois que eu li seu texto, fui me inteirar mais desse debate. Li outros textos, escutei relatos sobre machismo e atitudes/pensamentos preconceituosos em geral. Para mim, os relatos em primeira pessoa são mais fáceis de se criar empatia.
    Penso que minha postura mudou há alguns anos. Acho que ainda, por hábito, cometo alguns deslizes (o hábito precede a reflexão), mas tento sempre estar atento para ver meus erros, se for o caso pedir desculpas e buscar não repeti-los. Confesso que, no início, parei com as brincadeiras para não ter problemas. Hoje, não as faço por convicção de que são desrespeitosas e reprodutoras de um padrão nefasto.
    Deixei o mais importante para o final, que é falar com todos meus alunos e alunas e, claro, em especial com G.
    Sei que não é fácil, mas me perdoem.

    Atenciosamente,
    Harley Sato

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