quinta-feira, 12 de novembro de 2015

As Anas e Marias que descobriram o aborto seguro

por Letícia Bahia



A notícia da gravidez caiu como um caminhão de entulho sobre os ombros de Ana. O salário baixo mal pagava a farinha dos 3 filhos. O marido estava desempregado e andava flertando com a bebida. Desesperada, ela pediu ajuda a Maria. Anos antes, Ana soube que a vizinha também estivera grávida, e fez coro aos que julgaram a mulher pelo misterioso desaparecimento daquela gestação. Maria semi-sorriu condescendente, metade vingada, metade solidária. "Tem um jeito", confidenciou, "e não precisa de doutor". Contou a Ana o que alguma outra Maria tinha lhe contado dois anos antes: bastava comprar na farmácia os comprimidos - "uns 6, 8" - que resolveriam a barriga. "Vai doer", advertiu, "vai sangrar. Mas é assim mesmo", arrematou.   

As Anas e Marias que descobriram e disseminaram o aborto seguro no boca a boca se perderam no tempo, mas o legado que elas começaram a construir segue ajudando mulheres cuja escolha o Estado tenta, em vão, roubar. Essas mulheres não eram médicas e talvez não fossem feministas. Foram brasileiras comuns, anônimas, que descobriram meio sem querer o método mais seguro para interromper uma gravidez.


Um relatório publicado em 2008 pela Organização Mundial da Saúde em 2008 estima que 21,6 milhões de mulheres se submetem anualmente a uma das inúmeras formas de aborto inseguro - 85% deles acontece em países em desenvolvimento, como o Brasil. E, apesar de tudo que a Medicina já sabe sobre a eficácia e a segurança do aborto seguro, anualmente 47 mil desta milhões de mulheres morrem por complicações decorrentes de interrupções inseguras da gravidez.

Fonte: Organização Mundial da Saúde


A história do aborto seguro começa em 1986, quando o Brasil aprovou a comercialização de um medicamento para úlcera. Na bula, lia-se que o remédio não deveria ser usado por gestantes. Apesar disso - ou exatamente por causa disso -, Anas e Marias desesperadas por um aborto começaram a usar o Cytotec. Funcionou. De maneira espontânea, descentralizada e orgânica, os rumores sobre a pílula do aborto espalharam-se em velocidade espantosa. Não foi a internet nem a televisão, mas a necessidade das brasileiras a responsável pelo rápido crescimento nas vendas até o primeiro semestre de 1991, quando o Ministério da Saúde impôs restrições drásticas a sua comercialização. A utilização do misoprostol - princípio ativo do Cytotec - como método abortivo chegou a tal ponto que, em 1990, cerca de 70% da mulheres hospitalizadas por conta de abortos relataram o uso da droga. 


A experiência das mulheres brasileiras chamou a atenção da comunidade médica, que finalmente começou a estudar as propriedades abortivas do medicamento da Pfizer. Hoje, o misoprostol está na lista de medicamentos essenciais da OMS. O aborto com os comprimidos, embora doloroso, tem alta eficácia e baixo risco, sobretudo quando combinado com mifepristona, droga que também está na lista da OMS.


A intervenção do estado brasileiro inventou um mercado negro de comprimidos cuja eficácia não é passível de comprovação, e uma pesquisa conduzida pelo especialista em Saúde Pública e professor adjunto aposentado do Instituto de Medicina Social da UERJ, doutor Mario Monteiro, estima que em 2013 cerca de 700 mil brasileiras recorreram a um aborto inseguro.


As brasileiras que inventaram o aborto seguro perderam-se na História, e certamente não sabem quantas vidas já salvaram desde os anos 80. Diante da impossibilidade de recorrer ao estado e à Medicina, brasileiras comuns, sem formação específica, descobriram e disseminaram organicamente uma solução que lhes devolveu a autonomia sobre o próprio corpo. Apesar da dor - física e emocional - e dos riscos que elas desconheciam, nossa Anas e Marias foram e continuam sendo a prova viva - ou morta - de que quando mulheres se deparam com uma gravidez que não é bem vinda, elas recorrem ao aborto ilegal, qualquer que seja o custo para sua saúde. Sem o respaldo das instituições que deveriam ajudá-las, elas descobriram uma solução. Até quando seguiremos na clandestinidade?







Nenhum comentário:

Postar um comentário

Trocar ideia é legal. Para troca de ofensas, favor dirigir-se a outro guichê.