quinta-feira, 7 de maio de 2015

Eu já tive uma DST

por Letícia Bahia


Eu já tive HPV. Também já tive amigdalite, catapora e gripe. Mas destas eu não tive vergonha. 

É compreensível a gente querer manter na esfera privada doenças graves como câncer ou Alzheimer. Mas não era o caso do HPV. O tratamento foi rápido, indolor e eficaz. Depois foi só refazer o Papa Nicolau - exame que detecta o vírus - a cada 6 meses pra confirmar que estava tudo bem, e estava. Mas então, por que a vergonha?

Penso que a resposta esteja escondida no "S" da sigla DST. Afinal, vergonha e sexo andam tão juntos que muita gente se refere ao pênis e à proibidíssima vagina como "as vergonhas". Dentro dessa lógica, meu resultado positivo para HPV era a prova irrefutável do pecado: eu, mulher e solteira, havia me engajado em conjunção carnal. Tal qual os progenitores de cada um de nós, eu havia transado. Mas, diferente dos meus pais, eu não tinha o perdão prévio concedido pela instituição do casamento. Diferente de um homem, eu não tinha a indulgência concedida aos homens por, bem, serem homens. Mas poderia ser pior: eu poderia ser homossexual, e aí meu pecado se enquadraria como manifestação da praga gay.

A praga gay, também conhecida como vírus da imunodeficiência humana - ou simplesmente HIV - apresentou-se ao mundo no início da década de 80. À época, verificou-se uma alta prevalência do vírus na população homossexual masculina, razão pela qual a Aids recebeu a alcunha de "peste gay". É ou não é um encanto a espécie humana?

Então ficou decidido assim: se você tem alguma DST é porque aprontou. E 30 anos depois de reportados os primeiros casos de Aids, nós ainda não desfizemos o combinado.

Para além dos efeitos segregatórios que decorrerem desse preconceito demodé - já não é hora de deixar cada um decidir por si com quem trepar? - precisamos reconhecer seus efeitos nefastos no campo da saúde, porque se existem doenças sobre as quais temos vergonha de falar, tudo que diz respeito a tratamentos e - muito importante - prevenção fica encoberto pela névoa dos tabus. 

É comum, por exemplo, encontrar quem acredite que relacionamentos estáveis estão isentos do risco de infecção. "Eu confio nele/nela", dizem os apaixonados. Para além do fato de que estamos todos sujeitos a deslizes, é preciso que saibamos que o sexo sem proteção é uma entre várias maneiras de se contrair uma DST. É a mais comum, é verdade, mas você pode contrair herpes bebendo no copo de um amigo, e depois levá-la para o genital do seu parceiro via sexo oral. Você pode contrair Aids em um acidente de trânsito em que as vítimas tenham fraturas expostas e haja troca sanguínea. DST não é sinônimo de traição, e abrir mão da camisinha, lamento, sempre envolve riscos. 

Seguindo: como será que se sentem as garotas diante da camisinha? Eu já trabalhei com milhares, e a reação quando eu abria o pacotinho quadrado era sempre de constrangimento. Eu insistia para que elas pegassem, tocassem, sentissem a camisinha - você precisa estar à vontade com aquilo para saber o que fazer na hora agá - mas garota que se preze fica com vergonha quando o assunto é sexo. Melhor manter distância da camisinha, o que é que a turma vai pensar? Não por acaso, a popularidade do preservativo feminino - que eu, pessoalmente, recomendo - é um fiasco. Afinal, mulher e sexo são duas coisas que só podem andar juntas dentro do casamento, e pra quê usar camisinha dentro do casamento? 

Com os meninos o problema oposto gera o mesmo resultado: a necessidade de afirmar a masculinidade faz com que o garoto que recuse uma transa por falta de camisinha - um comportamento que deveria ser aplaudido - seja punido pelos colegas com risadas, acusações de brocha, frouxo e - o terror maior de um jovem em uma sociedade homofóbica - viado.

Esses e outros preconceitos têm uma característica importante em comum: eles situam as DSTs sempre lá longe. Repare que nada se afere do caráter de quem tem diabetes, dengue, Parkinson ou câncer. Eventualmente pode-se alegar que o sujeito colheu o que plantou: "sempre comeu mal e fumou a vida toda, uma hora chega a fatura". Mas os portadores de DSTs são maus. Estão doentes porque pularam a cerca, porque treparam demais, porque treparam com quem não conheciam. Estão doentes porque são umas putas, uns viados, uns drogados. Tivessem se comportado...    

Daí decorre o mito da imunidade imaginária, a certeza ilusória de que DSTs acometem outro tipo de gente, nunca o meu tipo. E se acontece, é preciso esconder para evitar o julgamento do mundo. E enquanto não acontece nos deleitamos na miragem de uma segurança fundamentada em moralismo e preconceito. O vírus da Aids, então, segue se espalhando, alheio às classificações que inventamos para reafirmar o quanto somos legais e honestos e comportados e generosos. É que as doenças são tão cegas quanto deveria ser a Justiça: ignoram seu caráter, seu sexo, sua cor. A única coisa que importa é se você deixou uma porta aberta. Mas como a gente acredita que nós e nossos parceiros somos bacanas o suficiente pra que as DSTs nos poupem, nos damos ao luxo de trepar sem camisinha. O resultado? Tendência de crescimento do HIV na população jovem masculina, apesar de pesquisas mostrarem que o problema não é falta de informação.

As soluções já estão desenhadas, mas como de más intenções Brasília está cheia, o prognóstico não é dos melhores. Os parâmetros curriculares estipulados pelo MEC posicionam a orientação sexual como tema transversal obrigatório, ou seja, ele deve ser trabalhado nas escolas por diversas disciplinas. É claro que a prática está longe de ser essa, e a vontade política de fazer acontecer é escassa. A exemplo disso, o museu Catavento, gerido pelo governo de Geraldo Alckmin, fechou no início deste ano a instalação em que eu conduzi milhares de oficinas com jovens sobre prevenção de gravidez e DST. Em 2011, Dilma cedeu às pressões das bancadas conservadoras e vetou a distribuição nas escolas do kit anti-homofobia. Se a presidenta abandonou a causa então, não há razão para crer que agora, com a corda no pescoço, levará adiante a promessa de campanha de criminalizar a homofobia. Estratégico no combate às DSTs, o debate sobre a homossexualidade não deverá contar aliados no poder público tão cedo. Muito pelo contrário: a bancada evangélica levanta seu estandarte cada vez mais alto, tendo como porta-bandeira o deputado federal Marco Feliciano. Diante disso tudo, caríssimos, confesso que está um pouco difícil manter o otimismo. Tudo que eu posso fazer é dizer abertamente que eu já tive uma DST, que contrair doenças faz parte da vida e que falar sobre elas é parte da cura. A gente é tudo gente, porra.

Deixo vocês com um vídeo de uma turma que está mais esperançosa do que eu:


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