quinta-feira, 23 de julho de 2015

A liberdade é maior que o gênero

por Letícia Bahia



Comemorávamos os trinta e poucos anos de uma amiga. As mesas do boteco já não comportavam o tanto de gente que queria tomar cerveja, e naquele começo de noite, como em tantos outros, a esquina da Fradique com a Inácio Pereira da Rocha estava lotada de gente alegre e barulhenta. Eu, cerveja numa mão e cigarro na outra, debatia acaloradamente as intersecções entre Feminismo e movimento negro. Foi quando a vi. 

Na verdade, não havia quem não tivesse se interrompido para notá-la. Chegou cantando e dançando como se sua vida fosse um musical. Purpurina nos olhos e jeito espetaculoso, segurou no poste da esquina e ropodiou cantando uma música da qual jamais me lembrarei. Cativante e sabendo-se em terreno amigável, bradou: "eu sou mulher!". 

Depois dos aplausos que sucederam a grande performance, começaram as pequenas: borboleteava em cada grupo interpelando os bêbados, fazendo piada e repetindo o bordão: "eu sou mulher!". Foi ovacionada em todas as rodas. Mas quando chegou minha vez, não lhe ofereci aplausos. "Eu sei", respondi. Ela abandonou a performance e me olhou em confuso espanto. O desconcerto passou tão rápido que talvez eu nem o tivesse percebido, porque na sequência ela retomou o musical e voltou a borboletear com os boêmios. Mas pouco depois, ela voltou.

Voltou sem os olhos de palco, pôs a mão no meu ombro e disse com sinceridade: "gostei de você, gata!". Ela foi dizer isso logo pra mim. Ela, a rainha da noite, para mim, que na próxima vida quero ser atriz da Brodway. O que eu poderia responder? Disse apenas que o sentimento era recíproco e puxei a próxima música do número. Ali, acobertadas pela cerveja, eu e ela fizemos o nosso musical. 

Como não sei sequer seu nome, nunca saberei ao certo porque ela gostou de mim. Mas suspeito que a resposta esteja em seu desconcerto. 

Ela pediu aplausos no lugar certo. Tivesse ido ao centro da cidade ou ao Itaim Bibi, teria talvez recebido insultos de baixo calão, ou talvez olhares de repúdio daqueles que se supõem elegantes demais para ofender - mas não para odiar. Mas a esquina do bar do seu Zé é generosa com a diversidade, e ela recebeu os aplausos que saiu pra colher. 

Mas de mim acho que ela ganhou algo que não esperava. Eu não dou a mínima se ela é mulher. Dentro da minha micropolítica utópica, tanto faz o que ela tem no meio das pernas ou a letra que representa seu segundo cromossomo. O caminho de liberdade no qual acredito passa pela desconstrução dessas duas caixinhas nas quais colocamos as pessoas quando elas ainda moram em úteros: "é menino ou menina?". É pessoa, pombas! Que tenha a possibilidade de explorar ao máximo todo seu  potencial, e que a cultura não lhe roube a possibilidade de usar sapato de salto porque nasceu com pênis, nem que torne mais íngreme o caminho da menina que quer ser engenheira. 

Mas o mundo não é assim e, mais do que eu, ela sabe disso. Precisa solicitar sua credencial de mulher. Se concedemos o crachá, autorizamos o cor de rosa; caso contrário, ai dela se não ficar no azul. 

É claro que seu corpo encerra fatos. É claro que não vai sentir cólicas menstruais, que seios não lhe crescerão espontaneamente e que nunca conhecerá as dores do parto. Talvez sofra por isso, e se esse for o caso o único remédio é o conformismo. O corpo impõe limites intransponíveis a todos nós, sendo a morte o mais democrático deles. Sendo tão pesado esse fardo, por que então inventamos e impomos a pessoas como ela correntes imaginárias? Será que precisamos sustentar a ilusão de que não somos todos apenas humanos? 

Por qualquer razão que seja, fato é que hoje se vive sobre a regência dos papéis de gênero. E eu não gosto de papéis de gênero, porque eles trazem consigo um roteiro mais ou menos fechado de como deve ser a vida do indivíduo a partir de uma imposição biológica, quando muito mais legal seria a gente poder escolher entre tudo aquilo que os limites do corpo não proíbem. 

Não é delírio, é sonho: houve já um tempo em que acreditamos que a quantidade de melanina na pele de alguém tinha relação direta com seu potencial cognitivo. Hoje, no entanto e felizmente, racismo é crime previsto em lei, e apesar de isto estar longe de significar sua erradicação, eu e muita gente entendemos que a quantidade de melanina serve apenas pra balizar o fator de proteção do filtro solar - porque afinal, das prisões do corpo não se pode escapar. 

Naquele pedacinho de noite, o sonho real que eu vivi - e que nunca saberei se coincide com o dela - era assim: agora não importa minha vagina ou o pênis dela. Se queremos dançar, que dancemos! Que ela cubra-se de purpurina se quiser brilhar! Quer usar saia ou vestido? Tenho muitos pra emprestar! 

Pode isso, e pode o contrário e pode misturado também.
Acho que o que eu disse a ela, meio sem querer, é que por mim ela poderia rodar sua saia a noite toda. Não porque é mulher, mas porque é uma pessoa que assim deseja. Eu lá preciso colocar gente em prateleiras pra dizer o que podem ou não? Se meu sonho é justamente cortar os fios que ligam o rosa à mulher e o azul ao homem, a flor à menina e a espada ao menino, a brutalidade aos garotos e às garotas a ternura. Eu quero mais é emaranhar essas cordas feito gato brincando com novelo de lã. Se eu sonho com a liberdade e com a não imposição deste ou daquele gênero a este ou àquele cromossomo, como poderia me colocar em posição de referendar a escolha de uma identidade restrita ao que hoje o mundo entende que é permitido para este grupo chamado mulher? 

Eu quero mais é que todo mundo possa tudo, ora bolas! Garçom! Traz mais uma cerveja e aumenta o som que a gente quer é dançar!




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