quarta-feira, 1 de julho de 2015

Feminismo de prateleira

por Letícia Bahia



Vi muita gente estourando champanhe para festejar as duas cervejas supostamente feministas lançadas nos últimos meses, a Cerveja Feminista e a 803 - uma alusão à data em que se comemora o dia internacional da mulher. Pessoalmente acredito na boa intenção dos fabricantes. Acredito que sejam favoráveis à igualdade social e política entre homens e mulheres. Só que de boas intenções o mercado está cheio, mas como o objetivo é o lucro, reflexões mais profundas são relegadas ao último plano. Como este blog não dá lucro, aqui temos espaço de sobra para isso.

A Cerveja Feminista se define, no site onde se compra o produto, como um puxador de assunto. "Coloca uma Cerveja Feminista na mesa, faz um brinde à igualdade e entra nesse papo com a gente", diz o entusiasmado manifesto. Um instante, maestro: por que cargas d'água alguém precisaria comprar uma cerveja - ou qualquer produto - pra bater um papo sobre a opressão feminina? Como é que comprar uma 803, a cerveja que escolheu "pelear por un mundo sen coleira", vai ajudar a empoderar mulheres? Será que parte das vendas será revertida para instituições como o Instituto Patrícia Galvão, que atua na produção de notícias e conteúdos sobre os direitos da mulher brasileira? Será que no ano que vem a Marcha das Vadias vai contar com um carro de som bancado pelos rótulos? Se há filantropia envolvida, os fabricantes não contaram pra ninguém.

Para alguns, esse é o caminho para a revolução feminista
O objetivo deles, por definição, é o lucro. É assim com qualquer empresa - por definição. As moças da Feminista podem ser muito bem intencionadas, podem ter lido Beauvoir, Dworkin e o que for, mas a condição de existência da cervejaria delas é o lucro. Os indicadores que mensuram a condição da mulher - número de estupros e feminicídios, remuneração, índice de gravidez não planejada, entre outros - podem subir, descer e fazer looping sem que isso traga qualquer alteração na empresa das moças ou na Perro Libre, a cervejaria que fabrica a 803. Mas se o produto empacar nas prateleiras, não tem conversa: alguma coisa vai ter que mudar. Pode ser o preço, a estratégia de marketing, o modelo de negócios, etc. Mas se as vendas caem, no limite a empresa fecha. Essa é a condição a que qualquer negócio está submetido, independente do desejo de seus sócios ou acionistas. Quem não quer operar desta maneira não deve abrir uma empresa, mas uma ONG, uma OSCIP ou um partido político. 

O que temos visto, no entanto e infelizmente, é uma enxurrada de produtos ditos feministas, ou que de um tempo pra cá começaram a se vender como feministas. Ora, se o mercado é regido pelo lucro e o mercado abraçou o Feminismo, a conclusão é que o Feminismo começou a dar lucro, certo? Repare, porém, que não é essa a história que as empresas contam pra você. O story telling - é assim que publicitários se referem às historietas que contam pra que a gente se identifique com determinada marca, e cujo grau de veracidade pode variar de quase tudo a nada - que você encontra nos sites diz: "escolhemos o Feminismo porque somos a favor da igualdade"; "queremos ver mais mulheres empoderadas"; "acreditamos que toda mulher deva se sentir linda". Mas peraí. Como é que vender cerveja vai fazer com que eu tenha meus direitos políticos e sociais respeitados? Pois é, não vai. Esses produtos não vão promover o Feminismo, mas o Feminismo vai promover todos eles, e ao longo do caminho, corre o risco de tornar-se oco. 

O caso das cervejas é emblemático enquanto exemplo de apropriação. Todo mundo viu quando as propagandas de cerveja começaram a passar dos limites. O público de hoje já não é mais o mesmo e muita gente descobriu, através do Feminismo, que é violento expor mulheres da maneira como esse nicho de mercado costuma fazer. Uma seara de consumidores foi ficando órfã - aqueles que não se identificavam mais com o marketing de nenhuma marca - e, em paralelo, o raio gourmetizador trouxe aos supermercados minimamente bacaninhas e a paladares leigos como o meu o gosto por uma cerveja um pouco mais cerveja. Não tinha como chutar pra fora, até eu marcava esse gol. A Perro Libre da 803 marcou, faturanto 400 mil nos primeiros 11 meses. A Feminista, por sua vez, recebeu 1.200 pedidos uma semana após o lançamento. E o Feminismo, o que ganhou?

Daqui de onde eu vejo o mundo continua sendo comandado por homens. Não colocaram mulheres no alto escalão da Ambev, colocaram? Alguns dirão que ganhamos espaço na mídia, nas ruas e nas mesas de boteco. Bom, se eu preciso comprar alguma coisa pra só então falar de Feminismo é preciso reconhecer que o Feminismo virou um produto. E aí vem aquela perguntinha incômoda: quem está faturando com isso?

A Unilever, por exemplo, está faturando. Os caras tiveram uma grande sacada quando, há 10 anos, criaram a campanha pela real beleza da marca Dove. Foram de um pioneirismo notável e hoje colhem as cifras, digo, os frutos disso. Vídeos da campanha pela real beleza são frequentemete postados em grupos feministas da internet - abracadabra!, fomos cooptadas! Esse pessoal é bom pacas, veja só que interessante: enquanto mulheres negras e gordinhas (gordinhas, porque as gordas seguem proibidas) vendem Dove, as modelos que vendem Seda, Vasenol, Tresemmé e Lux - só pra citar algumas outras marcas das quais a Unilever é dona - continuam magras, brancas e lindas. Mas tudo bem, o nicho das consumidoras que não se identifica com esse tipo de propaganda agora pode comprar Dove. Tudo como dantes no quartel de Abrantes. Nós continuamos acreditando que ser bonita é o que importa e o controle da Unilever continua nas mãos da mesma turma de sempre.

A P&G é outro exemplo. Eles são donos da marca de absorventes Always, que fez uma campanha linda sobre empoderamento feminino. Mas dê uma olhada nas propagandas de Pantene, Gillette, Mach3, Pampers, Ariel, Ace, Prestobarba - todas marcas da P&G - pra você ver se encontra algo diferente de homens sendo azuis e mulheres sendo cor de rosa. 

Quero lançar um bolão. É minha grande chance de ganhar dinheiro com esse blog: dois anos no máximo pra que a Ambev lance sua cerveja feminista. Provavelmente não vai vir com um marketing tão explícito quanto a Feminista ou a 803, mas a mira será certeira. Vejo propagandas com hordas de mulheres tomando cerveja em trajes descolados/elegantes/modernos, sendo servidas por homens e reclamando dos maridos frouxos. Se dermos sorte, aqui e ali encontraremos até uma negra ou uma gordinha (gorda não, por favor) nos comerciais. E aí fica tudo em paz: quem quiser propaganda com mulher gostosa tem seus rótulos, quem quiser bater um papo sobre um mundo mais igualitário também não fica sem birita e - muito importante - a Ambev continua vendendo cerveja pra todo mundo e mantendo os acionistas da vez ricos e felizes - os feministas e os machistas. 

Eventualmente, algum ganhozinho colateral pode advir desse feminismo-produto. É claro que é mais legal haver também meninas gordinhas em editoriais de moda. E, nossa, eu achei dos ovários quando aquelas duas moças botaram a boca no trombone por conta da apologia ao estupro da campanha de Carnaval da Skol, mas a gente precisa reconhecer que o prejuízo é muito maior. Esse novo marketing, tanto quanto o velho, precisa que a mulher consuma cada vez mais. É só pra isso que ele existe. Não há mudança estrutural: nós continuamos a léguas dos lugares de poder, seja na política, seja no mercado. E o tal do empoderamento, cadê?

Não tem. Não tem e se a gente não prestar atenção ele vai encolher, porque esse tipo de cenário cria a ilusão de que a luta está ganha, e isso é destruidor para qualquer movimento. Por conta de um papo de boteco aqui, uma propaganda bonita ali, passamos a acreditar que podemos baixar as armas, sem verificar quem segue segurando as rédeas do mundo e sem atentar para as estatísticas tenebrosas que devem ser o verdadeiro norte da luta feminista. Diminuiu o número de feminicídios, ou pelo menos a mídia começou a nomeá-los dessa maneira? E o número de estupros, de mortes por aborto inseguro, caiu? Em 16 de junho a Câmara dos Deputados votou contra o projeto que garantiria cota mínima de 10% de mulheres nas cadeiras parlamentares. Uma em dez, gente. É nada, e nem isso temos. E eu sei que você continua condicionando o tamanho da saia à hora que volta pra casa, porque eu também continuo com medo do que pode acontecer comigo se alguém achar que eu estou pedindo.

Então eu penso que devemos olhar com maus olhos para qualquer produto que se venda como feminista. Se a Unilever quiser ser parte da nossa luta, por mim ela é bem vinda, mas vai se sentar em um poltrona lá no fundo, vai ouvir, vai aprender e vai participar quando e se nós permitirmos. Se o Thiago, o Lucas e o Alberto (os três sócios da Perro Libre), estiverem realmente interessados em igualdade entre os gêneros, eles precisam ouvir mulheres e ler sobre Feminismo, e não lançar uma cerveja gostosa. Um produto não se torna feminista por conta de uma decisão na reunião da empresa. Um produto se torna feminista quando produz impactos reais na sociedade, como é o caso do coletor menstrual, que salva a vida de mulheres e promove uma relação mais saudável com nosso próprio corpo. Uma pessoa não pode lançar um produto e dizer que ele é feminista "porque eu digo que é". O nome disso é apropriação, porque estamos falando de pessoas e corporações que absolutamente não fazem parte do movimento, não têm história de luta, não conhecem a teoria feminista, não têm respaldo de coletivos ou instituições reconhecidamente feministas, mas que estão usando o nome do nosso movimento para fazer dinheiro. É o Feminismo trabalhando para o empresário, apesar de o empresário dizer (e às vezes acreditar) que está trabalhando para o Feminismo.

Produtos feministas existem, mas eu não sei se é possível que uma cerveja possa ser feminista, até porque o alcoolismo feminino vem aumentando sigificativamente e a bebida está intimamente relacionada a um enorme número de estupros e abusos, de modo que talvez fosse mais feminista promover uma campanha pelo uso moderado. Mas eu posso estar errada e acho que devemos estar abertas a esse debate, que é obrigação moral de quem quer usar o nome do movimento no rótulo do seu produto. Esse feminismo de prateleira, esse que recusa o debate, eu escrevo com letra minúscula, porque ele é oco e pode sufocar o meu Feminismo. E quando isso acontece, o nome desse feminismo de prateleira é machismo.


Reflexões de uma lagarta no Facebook
 
  

6 comentários:

  1. Ai Letícia, que texto maravilhoso!!! Muita lucidez nesses caracteres! Obrigada por isso!

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  2. Concordo com praticamente tudo que você disse, mas acho que exista um certo valor simbólico por trás dos rótulos da Perro. Lembro quando a 803 foi anunciada com um vídeo promocional que questionava alguns consumidores de por que separamos quase que inconscientemente as cervejas entre para homens e para mulheres. Por isso, foi feita no estilo IPA, um dos mais amargos e consequentemente, mais “ masculina”. Claro que isso não faz dela nem da Perro, cerveja e cervejaria feministas, mas não sou do tipo que acha que de boas intenções o inferno está cheio, muito pelo contrario.
    A única coisa que não concordo em nada com você é sobre a impossibilidade de uma cerveja poder ser feminista, não consigo enxergar um motivo que impossibilite isso. A história da cerveja conta com mulheres que, apesar de poucas, felizmente não estavam lá simplesmente para servir os homens. O mundo das cervejas artesanais não está livre de machismos, assim como quase nada no mundo, mas é sem duvida um circuito que observo um grande número de mulheres participantes, seja na produção e demais trabalhos decorrentes ou no consumo.

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  3. (Havia feito um comentário, mas parece não ter sido enviado).

    Eu sou homem, e tenho ciência dos meus problemas e das minhas contradições, e de todo modo apesar de respeitar muito os movimentos feministas, tenho minhas críticas aqui e acolá, o que acho saudável para um debate (desde que não vire agressão).

    O tema abordado pelo texto era algo que já vinha me chamando atenção, o feminismo virou "pop", o que é muito bom por um lado pois traz a visibilidade e a representatividade que vocês tanto desejavam, mas ao mesmo tempo todo espaço conquistado corre o risco de flertar com a cooptação.

    Acho que essa questão é muito necessária na atualidade e os movimentos sociais devem estar sempre de olhos abertos para não entrar nessas armadilhas.

    Abs!

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  4. que texto, dos ovários mesmo!
    sabe eu fui uma das pessoas que comprou a cerveja feminista, gostei do projeto das gurias, adorei o produto - quando chegou, quando tomei -. mas .... teu texto tem muitos pontos importantes, que não levantei na hora, que tirei do foco por estar super feliz de ver uma cerveja que "lembrava que eu existia", nesse mar de machismo cervejeiro. obrigada por trazer essa reflexão a tona.

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