por Guilherme Bahia
O casamento gay vai muito além do casamento gay. Vai ao coração da forma livre de viver em sociedade. A forma livre de viver em sociedade é a proibição do proibir, que só deve ser violada em situações muito, muito, muito (muito elevado a muito) excepcionais.
A Constituição do Brasil não se guiou pela forma livre de viver em sociedade quando falou do casamento. Preferiu uma abordagem uniformizante e, portanto, autoritária. O artigo 226, que trata do assunto, começa decretando solenemente: a família é a base da sociedade (você também ouve a voz do Cid Moreira quando lê isso?).
A família. Base da sociedade. Destino de todo ser humano. Realização do propósito da vida. Não! Mil vezes não! O ser humano não nasce com um destino, ele o constrói! E o propósito da vida não se conhece antes de vivê-la! (Talvez nem depois...)
A família. Base da sociedade. Ora, a pessoa adulta que não constitui família é o que então? Um imprestável? Não participa da "base da sociedade"? A base da sociedade, senhora Constituição, é o indivíduo. É no indivíduo que se realiza a criatividade, a diversidade, a liberdade. É dele que surge tudo o que não é predeterminado. (Estamos assumindo, é claro, e sem dispor de qualquer prova satisfatória, que o indivíduo de fato existe e não é uma mera ilusão criada pelo véu de Maia.)
O espírito autoritário do artigo 226 foi captado de modo tão preciso quanto involuntário pelo ministro Ayres Britto na ação que liberou o casamento gay. O ministro disse no seu voto que a família é um "organismo", um "aparato de poder". Sempre que vejo pessoas formando um organismo eu me pergunto quem é o cérebro e quem é o intestino. Sempre que vejo pessoas formando um aparato de poder eu me pergunto quem é o pau mandante e quem é o pau mandado.
O artigo 226 e sua tara regradora da vida alheia prosseguem com a limitação do casamento a duas pessoas, a partir da qual nós, a sociedade, violamos mais uma vez a proibição do proibir e nos concedemos o direito de vetar a poligamia consentida entre adultos, que ficam assim reduzidos a crianças.
(Se você citar Montesquieu e o papo de que as leis devem refletir os costumes da sociedade, eu contra-ataco de John Stuart Mill: “o despotismo do costume é em toda parte o impedimento permanente para o progresso humano”.)
Não surpreende o constituinte-bedel também ter escrito que das duas pessoas que compõem o casamento uma tenha que ser homem e a outra mulher. O Supremo conseguiu fazer uma ginástica pra contornar isso quando aprovou o casamento gay. Não sei foi juridicamente correto. O deputado Jean Wyllys tem uma emenda pra resolver o problema na origem, alterando esse dispositivo do artigo 226. Torço pela emenda dele. Torço pelas pessoas que livremente escolhem se amar. Torço pra que a escolha delas dependa unicamente delas, e não da inspiração de onze Excelências nem do voto plebiscitário de sei lá quantos milhões que nada tem a ver com a história, e cuja opinião só pode ser invocada por quem confunde democracia com ditadura da maioria.
A vida de cada pessoa deve se desenhar à medida que for vivida, não antes. Vivendo, cada um pode vir a ter um grande amor. Pode vir a constituir família. Pode vir a ter filhos. Pode vir a ter um cachorro. Pode vir a ter um guru. Pode vir a ser um guru. Pode vir a ser um gênio. Pode vir a ser um Homer Simpson. Em qualquer caso, terá vivido uma vida de alegrias e frustrações, uma vida humana (demasiado humana?) que cabe a ele desenhar, não a você, a mim ou ao livro das leis.
Vou além da emenda do Jean Wyllys. Senhora Constituição, não castre a imprevisibilidade maravilhosa das pessoas que nascem sem destino. Não escreva capítulos que cabe aos protagonistas escrever. Deixe que os amores aconteçam livremente. Jogue fora todo o seu artigo 226, se me permite a sugestão atrevida. Tenho aqui um outro que fica muito melhor. Retirei de uma irmã sua, a Constituição da República de Uzupis. Bem simples, ele diz assim: "Todos têm o direito de ser únicos".
** texto originalmente publicado no Facebook pessoal do autor em 9 de setembro de 2014
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