por Joana Penteado
Das possibilidades de elaboração do ser adulto ou sobre a importância da identidade no universo das identificações.
Há alguns poucos anos atrás, fui à festa de comemoração de 50 anos da escola em que estudei pela maior parte do meu tempo escolar. Era uma festa bonita, muito esperada e cheia de decorações temáticas, com espaços para que cada turma pudesse se encontrar e ao mesmo tempo interagir com outras. Era um encontro novo de histórias velhas. Depois de muito me questionar se deveria, decidi ir, um tanto feliz e um tanto ansiosa com a expectativa de reencontros que naturalmente evocariam memórias boas e ruins.
Um desses encontros foi com os meus 12 anos. Aconteceu através da memória de uma turma de meninas mais velhas que eu admirava, e que à época tinham 14. Eu gostava do que evocavam em mim, inspiravam e alimentavam minha adolescência. Destoavam do resto da turma. Vestiam roupas diferentes, escutavam música pela escola e fumavam. Na época eram ícones de ruptura, portanto, aos meus olhos pirralhos, revolucionários. A-ha, Snap ou Erasure compunham a trilha sonora que nos levava à loucura nas matinês de alguns sábados na Up & Down. Em outros, Guns'n Roses, Sister of Mercy, Sex Pistols e Ramones nos walkmans das tardes ociosas de produção de quem éramos ou seríamos, não sei mais.
Voltando à comemoração dos 50 anos da escola, cruzei com uma das componentes da turma revolucionária. No ranking de admiração da turma, ela ocupava o segundo lugar. Fui cumprimentá-la.
Aos 12, quando ousava falar com elas, cometia uma ruptura: ousava falar com meninas mais velhas. Uma mera pirralha aos 12 anos querendo contato com uma turma de meninas de 14!!! Eis que num misto de procurar por quem eu era e saber do meu desejo, essa turma deu consistência às minhas construções e também foi através delas que pela primeira vez eu pude formular algo sobre a minha sexualidade. Ao invés de ligar para o menino mais velho, eu ligava para a menina mais velha.
Um dia, o namorado de uma delas - gente boa, por sinal - disse que eu era lésbica. Eu não sabia o significado daquilo. Cheguei em casa e perguntei à minha mãe. Veio a resposta e um silêncio. O meu universo não abarcava tal representação. Nunca havia encontrado uma lésbica pelo meu caminho. Não que eu soubesse. Paralelamente, eu seguia cumprindo o esperado. Elegendo sempre um menino para dizer que gostava e para com isto poder fazer parte do mundo adolescente em que meninas gostam de meninos e meninos gostam de meninas. Para qualquer maneira de amor fora disso, não havia representação nos livros, nos exemplos de problemas de matemática ou em qualquer meio de expressão comum de afeto. A existência da homossexualidade ficava no campo do maldito não dito.
Uma menina ligar para uma menina e não para um menino era algo incabível! Causava estranhamento nos outros e em mim! O que era esta aberração?! Eu precisava de um motivo para justificar minha admiração por uma menina através de uma desculpa ou outra e eu não encontrava repertório no social que abarcasse a expressão deste afeto.
A segunda do ranking da turma de meninas admiradas, que eu encontrei naquela comemoração dos 50 anos, dirigiu-se a mim como talvez por conta do não lugar em que aos 12 anos eu me encontrava eu me permitia ser tratada. Ao cumprimentá-la, fui tratada como era natural que eu fosse tratada aos 12 anos: com hostilidade, como uma aberração. Hoje, revisitando minha memória da festa dois anos depois, deparo-me com esta cena em que já tenho 35 anos. Surreal! A segunda admirada do ranking estava acompanhada na festa por uma colega que provavelmente não conhecia a história. Ao atuar em sua melhor performance - humilhando-me como quando eu tinha 12 anos, sem estofo do universo para me retirar do lugar destinado - fico pensando no estranhamento da tal colega e valido o meu próprio, que não pôde ser expresso naquela hora, em que atravessada pela viagem no tempo, eu me acreditei ainda a menina aberração de 12 anos. Hoje, depois de perceber a situação, teria confrontado. Teria verbalizado o estranhamento expresso através da expressão facial da colega. Hoje, quero crer que meninas de 12 anos encontram outro cenário, no qual aberração seja a reação da segunda admirada do ranking. Porque para as formas de humilhação poderem acabar, precisamos falar sobre o maldito não dito. Introduzir o que ainda é velado à normalidade vigente.
Obrigada tempo, por eu estar viva no dia em que a Irlanda aprovou por voto popular o casamento homoafetivo. Obrigada mundo, por ressignificar o que é aberração, seja aos 12 ou aos 35. Ainda espero pelo dia em que meninxs possam expressar-se da maneira como bem entenderem, sem serem seguidxs por uma fala que lhes recubra o corpo com o pudor da heteronormatividade. A fala que pergunta a seres biologicamente de um “sexo”se namoram outro ser de 5 anos do “sexo oposto” é a mesma heterossexualidade que retira a sexualidade de uma criança quando esta manifesta desejos homoafetivos, explicando ao mundo que ela ainda é muito nova para saber de seu desejo quando este não convém à manutenção da norma. Por uma educação que desmonte aberrações, onde a filha da segunda admirada do ranking possa encontrar outro cenário e não reproduzir o mesmo modelo opressor de sua mãe - aberração.
* Reflexões de uma lagarta no Facebook
Foto: David Poller/Corbis |
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