sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Carta aberta a Marcia Masiel, diretora da Escola Estadual de Ensino Médio Itália, Porto Alegre - RS

por Letícia Bahia



Escrevo essa carta como psicóloga e como mulher. Minha intenção aqui é tratar de um episódio que chegou ao meu conhecimento por meio da aluna Nathália Lausch. É uma situação que me toca como psicóloga, e que nos toca a todas como mulheres.

Soube que a Nathália ficou bastante revoltada com o colégio por conta da decisão de proibir as meninas de entrarem na escola de short. Compreendo-a. É comum que nós, mulheres, sejamos julgadas ou cerceadas por aquilo que vestimos. Infelizmente a maioria não se indigna com o fato de que as regras que valem para nós, mulheres, muitas vezes não são as mesmas que os homens precisam acatar. Felizmente você tem uma aluna mais atenta do que essa maioria.

Compreendo também o lado da direção. Imagino a dificuldade de lidar com a pressão dos pais, dos alunos e, sobretudo, com a pressão dos séculos que nos dizem como devem se comportar os homens e como devem se comportar as mulheres. Se as pernas dos seus alunos são a dádiva que lhes garante a mobilidade, as das meninas são antes vistas como provocação, como um convite irrecusável ao sexo ou um enfeite para agradar os olhos da plateia masculina.

Mas antes de chegar ao cerne da questão eu quero lhe contar uma história. Aconteceu em 2014 no Rio de Janeiro, na unidade de São Cristóvão do Colégio Pedro II. Desafiando a escola, uma garota transexual trocou a calça do uniforme pela saia plissada, peça que de acordo com a regra deveria ser usada apenas por alunos do sexo biológico feminino. Contrariada, a direção imediatamente obrigou a garota a vestir novamente a calça, roupa que em nada traduzia sua identidade de gênero. A reação dos colegas não poderia ter sido mais questionadora, transgressora – e acolhedora. Alguns dias depois do ocorrido, um grupo misto de cerca de 15 alunos foi à escola usando a mesma saia plissada. Graças à solidariedade desobediente dessa turma o conflito foi parar nos jornais, forçando a escola a abrir um debate horizontal e participativo sobre a questão, hoje tão latejante, da diversidade de gênero. 


A solidariedade dos alunos do colégio Pedro II

O que esses alunos fizeram não é diferente do que a sua aluna está fazendo. Eles – e a Nathália também – estão exercendo o pensamento crítico e questionando as normas. Isso se chama fazer política, e é maravilhoso que uma garota de apenas 17 anos possa exercer esse papel.

Não se preocupe com a decisão final. Como psicóloga, aprendi e aprendo com meus pacientes que o percurso é infinitamente mais importante do que o objetivo. Seu verdadeiro desafio não é encontrar a palavra final, mas debater com a escola toda e construir conjuntamente uma solução de todos e para todos. É no trajeto que nos tornamos maiores, e a bagagem que acumulamos no caminho é tudo o que temos para lidar com os sucessos e fracassos – e também com as regras, concordemos ou não com elas. Quanto mais diverso for o percurso, mais recursos teremos para construir. 

Nathália está fazendo um convite à escola e a todos nós pra que repensemos nossos códigos de vestimenta e a maneira assimétrica como o aplicamos a homens e mulheres – e a todas as outras categorias de gênero. Esta discussão, tão importante e contemporânea, já está acontecendo e não é mais possível fechar os olhos para ela. A decisão que se coloca aqui é simplesmente se a sua escola será ou não palco desse debate.

Independentemente do que você, os pais e os colegas de Nathália pensem sobre o short das meninas, essa discussão precisa envolver todas e todos. Educar não é forçar uma regra goela abaixo. Educar, conforme nos ensinou o grande Paulo Freire, “é impregnar de sentido”. Não consigo imaginar oportunidade mais rica para um educador. Quando Nathália pergunta por quê não pode exibir as pernas - algo que é permitido aos garotos - ela quer construir sentido para essa regra de cuja construção ela não fez parte. Qual é o papel da escola e do educador? Ensinar obediência cega e resignação? Novamente busco em Paulo Freire uma resposta: “ensinar não é transmitir conhecimento, mas criar possibilidades para sua produção ou sua construção”. Parabéns a essa garota que já é, aos 17 anos, uma grande educadora. Que ela siga fazendo política, que encontre mais e mais espaços para o diálogo e que, onde não os encontrar, que seja capaz de construí-los.


**** texto originalmente publicado no Facebook pessoal da autora em 10 de novembro de 2014

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