por Letícia Bahia
Há exatos 6 meses, Jandira Magdalena dos Santos saiu de casa para fazer um aborto e nunca mais voltou. Alguns dias depois, escrevi esta carta.
Querida Jandira,
Há exatos 6 meses, Jandira Magdalena dos Santos saiu de casa para fazer um aborto e nunca mais voltou. Alguns dias depois, escrevi esta carta.
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Querida Jandira,
Hoje, dia 4 de setembro de 2014, eu fiquei sabendo que você está desaparecida desde o dia 26 de julho deste ano. Você saiu de casa pra realizar um aborto, Jandira, e nunca mais voltou.
Você engravidou de um homem com quem não tinha um relacionamento sério. Porque você é brasileira, não pôde optar por interromper a gravidez de maneira segura. Não, Jandira. Se você for encontrada e tiver realmente realizado o aborto, você será enquadrada no artigo 124 do código penal brasileiro, que prevê de 1 a 3 anos de prisão pra você.
Mas a verdade, Jandira, é que você já nasceu condenada. Você é uma mulher em um país que não te enxerga. Tenho amigas que já realizaram um aborto. Todas sobreviveram, diferentemente do que – temo – pode não ser o seu caso. Se você ainda está viva, Jandira, o estado vai tentar te encarcerar.
No dia 26 de julho, segundo li nos jornais, você se despediu do seu ex-marido, que a levou ao terminal rodoviário de Campo Grande, no Rio, e nunca mais voltou. Ninguém pôde te acompanhar. Você não pôde exigir da pessoa que realizaria o procedimento seu registro no CRM. Será que era mesmo um médico? Você não teria como comprovar a higiene do local onde se realizaria o aborto, nem como saber a procedência dos medicamentos que lhe dariam. O que você faria se notasse que algum deles estava vencido? Você não poderia fazer nada, Jandira, porque você é, para o estado brasileiro, uma criminosa. A clínica para onde você supostamente foi levada é um lugar clandestino, e para as pessoas que te ajudaram a levar a cabo sua escolha o código penal prevê reclusão de 1 a 4 anos.
Sei que não é fácil abrir mão de uma gravidez. Já flertei com esse dilema, Jandira, quando há muitos anos achei que pudesse estar grávida. Nessa ocasião, me imaginei andando pela vida sem um pedaço, sentindo culpa, me perguntando se me tornaria estéril. Mesmo nos países em que o aborto é realizado legalmente e com todas as garantias possíveis, é um pedaço que se vai. Não posso dizer que seja traumático para todas, mas é preciso ser louco pra não perceber que interromper uma gravidez não é uma escolha fácil. Não é um cisto. Não é um apêndice. Não é o dente do ciso. Jandira, eu admiro você pela coragem da sua escolha. Lamento, lamento profundamente que não lhe tenha sido permitido realizar essa escolha, por si só tão difícil, com o mínimo de dignidade e com uma mão amiga para segurar a sua.
Você poderia ser eu, Jandira, e você é muitas outras. Pesquisei alguns números antes de escrever esta carta, mas você sumiria diante do mar de mulheres que passa pelo que você passou, e eu não quero que você suma. Eu quero que você grite, que possa contar ao mundo o que você viveu. Você não é um número. Você é Jandira Magdalena dos Santos, de 27 anos. Você é eu. Não é possível que ainda se acredite que o lugar adequado pra você seja a cadeia, Jandira. Não é possível que reduzam seu dilema, sua escolha a um reles “fez, agora aguenta”. Não é possível que não entendam que o aborto já é por si só algo terrível, que todas as mulheres desejam ardentemente nunca vivenciar.
Eu não sei mais o que dizer, Jandira. Estou profundamente tocada com sua história, e sinto vergonha da maneira como meu país trata você. Desejo que você seja encontrada sã e salva. Desejo poder te dar um abraço e dizer frente a frente que você não está sozinha.
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Jandira foi enterrada em 28 de setembro de 2014. Mãe de duas meninas, ela morreu durante o aborto e seu corpo foi encontrado carbonizado, sem as impressões digitais e sem a arcada dentária. Um exame de DNA comprovou a identidade.
* texto originalmente publicado no Facebook pessoal da autora em 4 de setembro de 2014
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