segunda-feira, 8 de junho de 2015

O velho sexo dói na mulher

por Letícia Bahia



Apagam-se as luzes, vai começar o espetáculo. Ele já está em cima dela, a camisa pendurada no abajur. Tudo parece especial, único, ímpar. Ela pensa que não existe mais ninguém no mundo. Ele pensa que ela é toda dele, e enfia a mão por dentro da calça dela, todo carne, todo corpo. Ela retorce os quadris e o abraça com as pernas, entregue, inteira, intensa. Até que ouve um clique. Acende-se o abajur, e na poltrona do quarto está a sexóloga da palestra que ela assistira na semana anterior: "calcinha bege, querida?!". Seu corpo se contrai muito sutilmente, e ela sabe que precisa fazer-se relaxar. Ela sabe que ele não ouve a sexóloga, mas que seu corpo pode denunciá-la. Ele segue alheio à calcinha bege. Não é que ele não tenha percebido alguma resistência. Mas quando a luz se acendeu, quem estava na poltrona dele era aquela puta da adolescência. Não a primeira - a de quando ele brochou - mas a terceira ou a quarta. Ela dançava para ele proibindo-o de tirar sua roupa, e ele sabia que isso significava que ele deveria arrancar sua calcinha - de cuja cor ele não se recordava. 

Ela já estava sem calcinha quando viu nos olhos dele o galã da novela, e então se sentiu amada. O amor foi se espalhando como fumaça quente, e ela imaginou filhos, casa, flores, anel, e tudo que ela imaginava aparecia no quarto, e o quarto virava um depósito das quinquilharias dos sonhos dela. Virou a cabeça e... susto! Sua mãe também estava no quarto, e ela lhe dizia que os homens não prestam e que o amor dói, e então a fumaça quente começou a ficar tóxica. 

Ela parecia menos entregue, e ele tinha aprendido nos filmes que por isso deveria possuí-la mais, mais, mais. Mas seus olhos miraram o quadro em cima da cama, e de dentro dele quem lhe falava era o professor de educação física da segunda série: "só isso?! Moleque frouxo!". Desviou os olhos somente para encontrar o menino com quem ele brincava de médico na sexta série. Fazia anos que não o via, como estava bonito! O menino o estava ajudando com seu pênis, que ficara meio mole por causa do professor, mas na sequência quem entrou no quarto foi o Papa, e o Papa não precisou dizer nada, porque dizia com os olhos. 

Eles pensaram que estavam sozinhos, e quando acenderam as luzes descobriram toneladas de pessoas comandando seus corpos. Algumas eles nem conheciam, outras tinham visto nos livros de História do colegial. Eles descobriram que o sexo deles é político. Com um fundinho de natureza, vá lá. Mas diante do monstruoso aparato social que circunda o sexo dos humanos, a Biologia não é mais do que uma criatura entre as infinitas que deitam-se na cama conosco quando fazemos amor. Muito pouco do nosso sexo pode realmente ser chamado de "o nosso sexo". Quase tudo que acontece quando transamos, dentro e fora de nós, é produção cultural, social, histórica. E o sexo do nosso tempo é um sexo que dói nas mulheres. 


A gente também reproduz o sexo que vê no cinema
"Ontem eu até que estava de boa, mas ele queria, então rolou". A frase é recorrente no meu consultório, onde muitas mulheres me contam, sem saber, que aprenderam que seu desejo é menos importante do que o desejo de seus maridos. Nós aprendemos a fingir, a sentir uma dorzinha e relevar. Se não estivermos disponíveis ele vai ficar bravo e pode ir embora, e nós não fomos treinadas para sermos independentes. 

É fato que a prática sexual expressa a cultura de seu tempo. Quando alguns grupos feministas resolvem problematizar algumas dessas práticas, logo vem a patrulha liberal pra dizer que todo indivíduo deve ser livre para trepar como quiser. Fico imaginando um indivíduo esterilizado, protegido de calor e luz e embalado a vácuo. Sim, porque essa turma parece supor que indivíduos têm existência independente do universo, e não que tenham sido produzidos na e pela sociedade. 

Na verdade, acho que os compreendo. É gostoso a gente ficar enaltecendo o eu, falando das minhas escolhas, minhas responsabilidades. Faz a gente achar que é mais importante do que é. Foi meio por isso que o pessoal ficou tão bravo com Copérnico quando ele disse que, sinto muito, nós não somos o centro do universo. Antropocentrismo é gostoso pacas. 

Eu por exemplo, detesto admitir que essa calça jeans que eu escolhi, eu meio que não escolhi. Na verdade eu fui ensinada por revistas, filmes e novelas que usar calça jeans é legal. E isso só aconteceu porque, muitos anos antes de eu nascer, o cinema americano resolveu que calça jeans não ia mais ser vestimenta de trabalhador braçal (meu pai até hoje chama calça jeans de calça rancheira) e que ia ser usada por gente descolada como James Dean e Marlon Brando. Antes disso seria impensável comprar uma calça jeans bacana no shopping center, já que calça jeans era roupa de operário e trabalhador rural. E eu achando que eu tinha escolhido... 

Acho importante tranquilizar a turma do Feminismo Liberal: eu não vou botar fogo na minha calça, e ninguém está querendo arrombar quartos de motéis com armas em punho para mudar a maneira como as pessoas transam. Não se trata disso. Se trata de reconhecermos que minha calça jeans - e eu, e o meu sexo, e o seu - é construção histórica, independente de a gente se dar conta disso ou não. Nós reproduzimos e reafirmamos valores através do sexo (e de tudo), e é importante que a gente se pergunte se são valores que a gente queira perpetuar.

Então nós vamos continuar debatendo e criticando práticas como a prostituição e a pornografia, que podem vir a não ser machistas na Suécia de 3047, mas que hoje são expressão da opressão feminina em praticamente qualquer ponto do planeta. Nós não vamos criticar a mulher que gosta de ser amarrada e chamada de vagabunda, mas vamos sim discutir por quê essas fantasias são tão mais comuns nas mulheres e o que isso diz sobre nós todos. O exercício do prazer é privado, mas sua construção é histórica. Ninguém pode lhe tirar o direito de gozar como você bem entende (só a lei, claro), mas isso não significa deixar de lado uma leitura do sexo como expressão social. "Ele/ela gosta/escolheu assim" não é argumento, até porque - repito - não se trata de policiar o sexo como prática individual, mas de buscar uma compreensão mais profunda sobre como se construiu esse gostar/querer e o que ele diz da sociedade que o acolhe. 

O Feminismo da turma que problematiza a maneira como transamos (a essa altura você já deve ter descoberto que eu sou desse time) não quer mais esse sexo que dói nas mulheres. Apesar de os liberais nos acusarem de invadir motéis, nós persistimos com as nossas perguntas, e os desdobramentos práticos disso são tão fundamentais quanto dolorosos. 

Muitas mulheres estão se dando conta de que entregar-se ao sexo mesmo sem muita vontade não é natural, é construção social. Estas mulheres olham para trás e passam a ver relações sexuais abusivas - embora consensuais - onde antes viam transas normais. O abusador ali não é o parceiro, mas uma cultura que ensinou-lhes que é assim que as coisas funcionam, que esse é o normal. É muito doloroso, porque você precisa se reconhecer como seu próprio algoz. Não se pode simplesmente culpar a cultura e isentar completamente o indivíduo - e nesse ponto dou ganho de causa aos liberais - porque se a gente faz isso, se a gente mata o indivíduo, a gente mata também a possibilidade de ele sair dessa. 

É muito, muito difícil sair dessa. Vejam que sinuca de bico: de um lado, mulheres que não querem mais seguir o velho modelo se-arrume-que-eu-vou-lhe-usar. Elas só sabem como querem não fazer, mas estão diante do desafio de construir um modelo novo. A ameaça da solidão, que já nos atrai para dentro da fôrma da mulher ideal - aquela que é pra casar - vai ficar ao pé do ouvido o tempo todo dizendo que é melhor deixar como era antes, cuidado, ele não vai gostar, vai arrumar outra. E ficar sozinha é um grande pânico feminino, porque nós não somos treinadas para sermos independentes. É mais seguro transar como aprendemos no cinema, e gostar de transar desse jeito ou acreditar que isso é simplesmente normal evita muitos problemas. 

Do outro lado estão os rapazes, deitados em gordas almofadas de seda e rodeados de escravas que lhes oferecem carnudas uvas. Alguém acha que vai ser tudo bem quando acabar a mamata? Alguém acha que o marido vai achar tranquilo ser casado com essa nova mulher, que por quinze anos trepou todo dia e de repente resolveu que é só quando ela quer, e em outra posição, e com a luz apagada, e mais devagar, e com um vibrador na mão? Existe alguma chance de esses meninos que praticamente não sabem a diferença entre seu desejo e uma transa não espernearem? É claro que modelos sexuais que tirem o homem do lugar de dominação vão encontrar resistência. Se nós persistimos com firmeza, eles deverão experimentar sentimentos de impotência, baixa autoestima, raiva, frustração. Nós já vimos isso acontecer quando as mulheres entraram no mercado de trabalho. Se eles vão reagir a isso com terapia ou com porrada é outra questão. Mas vai doer, e vai doer em todo mundo.  

Estamos falando de reconstruir paradigmas. Parece algo que dê pra fazer sem dor? Daqui de onde eu vejo me parece uma tarefa difícil até não poder mais. Outro dia eu perguntei, em um grupo de estudos sobre Feminismo, quem eram as mulheres que podemos ter como modelo? Quem são nossas referências, aquelas cujos comportamento transbordam igualmente potência e igualdade? Depois de muitos palpites frustrados, concluímos que nós teremos que ser nossos próprios modelos, porque estamos falando de rupturas, da criação de algo que não existe. Nós temos essa tarefa árdua de inventar um sexo que não seja mais para o outro.

Ao mesmo tempo, me parece um dos desafios mais bonitos de que já tive notícia. Eu sou uma otimista. Acho que a gente dá conta, e acho também que os homens dão conta. E acredito, simplesmente porque sim, que esse novo sexo é algo que todo mundo quer. Hoje, para uma transa consensual acontecer entre um homem e uma mulher, a gente só precisa de um "sim" e um "mais ou menos". Não vai ser muito mais legal quando sexo só rolar quando a gente tiver dois grandes, carnudos e vermelhos "sim"?



Reflexões de uma lagarta no Facebook

4 comentários:

  1. Puta que pariu!!! Vai ser boa assim lá longe.
    Dói mesmo, dói o joelho, dói as costas, dói o rabo e cansa também... Que droga, que prazer...

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  2. Puta que pariu!!! Vai ser boa assim lá longe.
    Dói mesmo, dói o joelho, dói as costas, dói o rabo e cansa também... Que droga, que prazer...

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  3. Olha, o texto está de parabéns.
    Carregado de ideias corretas e propositivas. Só quero dizer que o gênero da "cultura" é ainda algo a ser revisado. Pois homens também são aculturados sexualmente por uma série de sugestões hipoteticamente femininas (é claro - advindas do cinema, e das outras fontes culturais exteriores): de que tem que ter o pênis maior e mais duro para satisfazê-las (e isso é ouvido da boca de mulheres - seja no cinema, seja no círculo de amizades); de que tem que transar uma noite inteira para satisfazê-las (independentemente do cansaço físico, mental, até do esgotamento sexual); de que tem que malhar pra parecerem mais belos, fortes, agressivos e desejados; de que tem que serem mais ricos para proporcionar mais confortos à companheira; de que tem que usar perucas, tingir cabelos; subverter a naturalidade dos seus corpos para atender a esses mesmos pressupostos de desejos femininos. Ou seja, como na questão Colonizador x Colonizado, sempre há colaboracionistAs a atuar em favor do dominante e em detrimento dos seus pares, do seu grupo, da sua espécie, e isso também se dá entre as mulheres - especialmente, dentre as que são tidas como mais belas, mais gostosas, mais desejadas. E evidentemente que estou falando só da parcela de 1% ou menos do problema, já que reconheço que 99% ou mais advém do gênero masculino mesmo. Ou a conversa teria de seguir para um nível mais antropológico a essas alturas.
    Às vezes o sexo dói também no homem.
    Mais uma vez, e sem falsos elogios: Parabéns pelo excelente texto!
    Ass: Rafael, um anônimo sensível.

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  4. Ótimo texto, muito perspicaz! Seria bom ver isso do outro lado também, problematizando a questão da dependência que o homem tem de uma instância que não controla conscientemente. O pênis, na verdade, é o maior tirano da relação sexual e é preciso levar em conta as questões mecânicas e psicológicas que envolvem a ereção porque tudo no sexo velho remonta à ereção. O homem aprende que não satisfaz a mulher só com a mão e a língua, que não foi homem o suficiente se não fizer a mulher gozar com o pau e sem essa ideia ser revogada de forma unânime, sem um abaixo assinado coletivo de todas as mulheres declarando independência total do "valor sexual" do homem de seu pênis, ele permanece escravo dos desígnios de sua ereção pois sem ela , o homem só pode ser pai da moça, filho da moça, mas a parceria parece ser concretizada na ereção. A própria idéia de namoro heterossexual cis exclui os eunucos, namorar só de dedada e língua não parece ser aceitável nem às feministas. Só que o pau amolece e endurece quando e como quiser, e se o cara quer ser gente boa e "feminista" no sexo, e tentar por exemplo transar na posição x ou y que a menina mais gosta, o pau pode simplesmente não concordar. Muitas vezes o machismo vem de baixo, ainda que pareado ao discurso que manipula o fluxo da ereção na direção de certos interesses políticos.

    Muitos dos maiores problemas com o sexo são como moedas, e cada gênero quer resolver uma das metades mas gosta da outra. É precisamente por isso que tudo fica mais complicado. Por isso eu acho importantíssimo ser honesto com a namorada, o namorado, e tentar negociar essas coisas com honestidade, deixando de lado as "regras" do velho sexo ainda que seja pra chegar em acordos que não vão tão longe dos velhos paradigmas. E por ai vai. Quem sabe o Rafael não escreve um dia? :)

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